Não é fácil produzir a aceitação da morte. Especialmente difícil é aceitar a morte de crianças.
Num passado não muito distante era diferente. Os precários recursos de saúde determinavam altas taxas de mortalidade infantil associadas a altas taxas de natalidade. Era comum nos anos 60 que médicos perguntassem a suas pacientes quantos filhos ela tinha e quantos estavam vivos. Era assim “natural” que muitas crianças morressem.
Hoje em dia as coisas são diferentes. O avanço da medicina, a revolução da saúde pública, a invenção de medicamentos eficazes contra processos infeciosos determinou uma queda vertiginosa da mortalidade infantil nas últimas décadas em grande parte do planeta. Nosso conhecimento social, dada a pouca visibilidade da morte na infância, tornou-se incompetente em produzir sentidos e significações que minimizem seu impacto. A maioria de nós não se encontra mais preparada para aceitar que crianças quando morrem se transformam em “anjos”.
No campo da saúde não será diferente. Nossos profissionais são formados em sua esmagadora maioria para atuar terapeuticamente. Assim, diante de situações onde esse preparo aparenta ser inútil, é comum ouvirmos aquela terrível expressão: “Não há mais nada a ser feito”. Ela soa natural quanto estamos lidando com idosos ou adultos maduros. Mas quando se trata de jovens e crianças, essa afirmativa pode produzir intensos sentimentos de impotência e tristeza, tanto nos profissionais quanto nos familiares.
Assim, nos deparamos com um paradoxo. Seja movidos pela mentalidade de uma medicina que luta sem quartel contra a morte, seja movidos pela ideia de um milagre a qualquer custo (mesmo que “Deus” se vista de branco), profissionais e familiares podem se unir para legitimar práticas de tratamentos invasivos. O terapeuta pode ser ainda mais obstinado frente a um ser que não é só vulnerável pela sua condição infantil mas, neste instante e acima de tudo, mais ainda vulnerável pela situação da doença.
Foi com grata alegria que recebi essa semana a notícia que em São Paulo, no bairro de Itaquera, foi aberto um Hospice voltado exclusivamente para o atendimento de crianças.
Antes de continuarmos é necessário esclarecer que “Hospice” designa um espaço institucional o mais parecido possível com uma casa, espaço este voltado para a prática dos cuidados paliativos e que tem a sua disposição uma equipe de cuidados paliativos. Pode funcionar nos modelos de permanência integral ou então apenas durante o dia. Portanto, funciona como um porto seguro para aqueles que acham inadequado cuidar de seus entes queridos em casa, mas, ao mesmo tempo percebem que o hospital também é inadequado.
Já existem alguns hospices em funcionamento no Brasil. Entretanto, ainda não havia um voltado mais especificamente para o atendimento de crianças. Talvez isso sinalize um bom “sintoma”. Estamos conseguindo perceber que existem coisas que podem ser pior do que a morte. O sofrimento desnecessário que muitos pacientes em vulnerabilidade extrema estão expostos hoje pode ser atuado de maneira adequada no final da vida. Estamos produzindo algum nível de aceitação da morte com relação às crianças, e são os olhos delas que abrem os nossos para a necessidade de humanizar os serviços de saúde, todos os serviços, incluso as formas de se lidar com a nossa partida.
Veja aqui a notícia sobre o hospice infantil
