Uma orquídea no espelho
Depois de um cansativo dia de trabalho, estávamos nós, eu e uma amiga de longa data, no trajeto de volta para casa, quando ela começou a reclamar da vida cansativa de enfermeira do PSF. Eu, fingindo escutar, aproveitava a música do rádio e a linda vista do mar de Ponta Negra. Naquele dia, não me sentia disponível para ouvir reclamações. Ela continuava com os lamentos: sono, cansaço, enxaqueca, dores no corpo… Um verdadeiro rosário de lamentações era desfiado diante de mim sem pausas, sem dó, nem piedade. Tentei fazer piada da situação, sem nenhum êxito; ela estava mesmo querendo desabafar. Modifiquei minha tática e lancei a pergunta: o que houve? Ao que respondeu de imediato: “detesto tratar feridas”.
Achei sua fala meio cômica, mas pelo olhar lançado, vi que a coisa era séria. Decidi então escutá-la.
Contou-me que a colega de equipe insistia que fosse junto com ela visitar uma senhora de 69 anos, diabética, portadora de uma enorme úlcera no membro inferior que nunca cicatrizava e a impedia de se locomover. Por “detestar feridas”, negara-se a ir até que se viu pressionada a avaliar que ferida era essa que não cicatrizava.
A senhora tinha três filhos que raramente a visitavam e o marido trabalhava o dia inteiro. Para deixá-la “em segurança”, ele havia comprado um enorme cão, o que dificultava ainda mais a visita da colega que precisava fazer verdadeiros malabarismos para conseguir entrar na casa. Depois de escutá-la discorrer detalhadamente sobre a secreção, cor, tamanho, odor e aspecto da ferida, conhecendo-a como a conheço, suspeitei que ela tinha muito mais a dizer e perguntei: e ela, como é?
A expressão de revolta estampada em seu rosto lentamente suavizara e agora me falava de modo tranqüilo.
Era uma senhora amável e falante, apesar de carregar certa mágoa por viver sozinha. Revelou-lhe sobre os seus dias e de como estava se sentindo bem com sua visita, momento raro em que sua ferida não estava no centro das atenções. Passava o seu tempo pintando. Mostrou-lhe lindas e diversas orquídeas pintadas em espelhos de tamanhos e formatos variados. Alguns embalados cuidadosamente em papeis de seda e empilhados no armário. Outros, enfeitando as paredes nos vários cômodos da casa. Os quadros da bela senhora refletiam-se na luz enchendo a casa de brilho e de cores; exibiam-se alegres, repletos de vida como se quisessem revelar toda a beleza de sua autora.
Ao primeiro elogio da enfermeira acerca de sua obra, a senhora escolhera um deles e deu-lhe de presente: um espelho redondo com uma ponta que exibia uma linda orquídea delicadamente pintada. Pediu-lhe que se olhasse nele e perguntou: o que vês?
Ela não respondeu, titubeou, inventou desculpas, agradeceu e foi embora se sentindo péssima por ter evitado tantas vezes aquela visita.
Chegamos em casa. Ainda dentro do carro, pedi para ver o presente. Sem conseguir conter meu deslumbramento, pedi-lhe que se olhasse novamente. Sua imagem se refletia como se carregasse uma orquídea na altura do peito.
Era sim, merecedora daquela imagem.
Invejei por um momento a sabedoria daquela senhora. Em tantos anos de amizade nenhum presente fora capaz de tocar tão profundamente a minha companheira de viagens quanto aquele que ela agora contemplava.
Lembrei de Jussara, outra grande amiga que se debruça a estudar feridas apaixonadamente. Ela as observa, contempla, fotografa, compara-as e rega-as como se estivesse a cultivar orquídeas na pele. Ocorreu-nos ali, diante daquele espelho, que deveríamos proporcionar um encontro entre as duas.
Por patrinutri
Que maravilha este relato amiga!
Quanta poesia!
Hoje acho que compreendi o que Gastão nos tenta dizer , mas que nem sempre conseguimos escutar: produção de cuidado e produção de saúde.
Saúde de quem cuida e quem é cuidado, uma clínica que vai além do tratamento da ferida, que chega na mente, nos sentimentos , na vida de quem está no processo.
Obrigada por compartilhar conosco a vida que pulsa em teu fazer diário.
E uma outra coisa muito importante você evidencia na sua fala: a importantância de sair da posição de lamento, da falta de sentido, buscando a dimensão da saúde , do que dá certo. Isto é PNH !
Na sexta feira voltando para casa depois de toda a semana em viagem, sentei no banco do onibus sem saber ao certo o que o futuro me reservaria. Quem sentaria ao meu lado, já que estava sentada na poltrona da janela. Em seguida senta-se uma jovem que estava indo para a festa Oktoberfest que a esta altura nem me lembrava que já havia iniciado em Blumenau.
Ela expressou-se aliviada por estar sentado ao meu lado pois não queria ter que compartilhar a viagem com alguém que lhe fosse desagradável. A partir daí começamos o diálogo.
Muitas coisas em comum surgiram durante esta conversa. Até que estudava artes plásticas e estava pesquisando sobre auto retratos de jovens artistas brasileiras da contemporaneidade. Então falamos como surgiu o auto retrato pela descoberta do vidro e do uso do mesmo como espelho e que passou a possibilitar aos artistas pintar-se. No entanto uma coisa ela observa em seus estudos: as pessoas retratam personagens de si mesmas e que cada um aborda uma dimensão pela qual gostaria de ser marcada socialmente.
Acho que isso pode servir bem para nossa conversa agora.
Como queremos retratar nosso fazer?
Como fazemos uma auto retrato de nosso dia a dia no SUS.
Que retrato pintamos do SUS?
Grande beijo
Pat