A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL
A constituição de 1988 conferiu um catálogo gigantesco de direitos fundamentais individuais sociais difusos ao cidadão e automaticamente ao longo dos anos a sociedade passou a se utilizar do poder judiciário para garantir a concretização desses respectivos direitos em detrimento da omissão histórica do estado.
Em 2013 o Conselho Nacional de Justiça apontou que temos numa estimativa grosseira 92 milhões de processos judiciais em tramitação para garantias de direitos como educação, saúde, desportos entre outros. Esse cenário demonstra que o Brasil é um dos países mais litigantes do mundo. Para cada processo judicial existe um demandante e um demandado, multiplicados por duas partes, temos em torno de 180milhoes, um processo judicial por habitante. Significa dizer que algo não esta muito bem no estado brasileiro e o que se espera do judiciário é algo que ele não poderá conceder por essa multiplicidade de demanda, não é factível.
O SUS não veio sozinho. Quando foi concebido, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), já se previa que só seria possível construir um sistema dessa amplitude, com a participação efetiva da sociedade brasileira. E ela participou.
O povo abraçou para si a possibilidade de ter um sistema de saúde que pudesse atender a todos de forma integral, universal e equânime. Da mesma maneira, a sociedade brasileira reiterou sua determinação de exercer o controle sobre a gestão, não apenas de caráter fiscalizatório, mas para ter o poder de governar junto, desde a etapa de planejamento até o processo de avaliação de resultados. Isso se chama Controle Social. (Revista da Saúde/2007)
Duas estratégias marcantes neste processo de efetivação do SUS, estão representadas pelos os conselhos de saúde, que têm a função de formular estratégias e controlar a execução das políticas , a segunda são as conferências de Saúde, arenas nas quais a participação social se antecipa à formulação de políticas, pois se volta para desenhar os princípios, diretrizes e pressupostos que devem orientar todo o processo de formulação de políticas de saúde no período seguinte. (GUIZARDI et al, 2004).
Segundo shulzer, a judicialização da saúde (vida) se deu, pela grande expectativa que o Sistema Único de Saúde gerou a sociedade, que jamais será alcançado pelo Brasil. Concordo com ele até porque, mesmo nos países considerados referência em atendimento a saúde, não existe a prerrogativa de que o cidadão tenha direito a tudo e que esse direito decorre em abrigar-se em unidades de saúde e as mesmas garantir moradia, transporte, alimentação dentre tantos outros direitos . É urgente que se faça uma nova discussão sobre integralidade no SUS.
O contexto de Judialização da Saúde chega como estratégia de modernidade tardia, vista com via transversal de alterar políticas públicas já estabelecida e como mecanismo para sanear a inaptidão da gestão dos serviços de saúde. O grande ponto de interrogação é quais os limites do judiciário no exercício desse controle nas omissões do legislativo e executivo na concretização do direito a saúde?
Por deboraligieri
Cara Maura.
Muito bom ler um texto sobre a judicialização da saúde sem extremismos, falha de que não consigo escapar nas minhas manifestações por justamente ter a vida garantida em função de uma ordem judicial de fornecimento de terapêutica pelo SUS (bomba de infusão de insulina com monitoramento contínuo da glicose). Nessas condições, não existe outra possibilidade de posicionamento, senão de pró-judicialização.
Entretanto, mesmo sendo advogada e autora na área jurídica de saúde pública, vejo que o processo judicial é mais um mal necessário (por ora) do que algo desejado. Uma ordem judicial é o gato, e a previsão no protocolo do SUS é o cão (quem não tem cão caça com gato!). Mas o sonho de todos os pacientes mesmo é receber pelo SUS o tratamento de que necessitam para ter uma boa qualidade de vida de forma espontânea. A certeza de poder evitar o risco à vida e à saúde, através de opções terapêuticas em consonância com o consenso médico especializado, é o que realmente desejamos do SUS.
No seu texto está muito bem colocada a questão das ações judiciais como uma forma de controle e participação social nas políticas públicas de saúde, pois a possibilidade de procurar a efetivação dos direitos submetendo a questão à análise do Poder Judiciário é um pressuposto mínimo do Estado Democrático de Direitos. Atender a todos os pedidos não. Há dois acontecimentos que, através do controle social via ações judiciais, trouxeram orgulho e melhorias ao SUS: o tratamento de AIDS, originário das inúmeras ações judiciais, hoje inexistentes para requerimento do coquetel, fornecido pelo SUS, e a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS), órgão do Ministério da Saúde criado em 2011 depois da audiência pública sobre saúde do STF em 2009, a partir da percepção de que grande parte das demandas poderiam ser evitadas se os protocolos clínicos do SUS sofressem atualização constante (o que só começou a ocorrer depois dessa data).
Estive presente como ouvinte no primeiro dia dessa audiência pública do STF, e lembro de uma fala do Juiz Ingo Sarlet, do Rio Grande do Sul, que coloca a questão em relação ao problema de restringir os tratamentos de saúde aos protocolos do SUS de forma muito precisa, ao dizer que: "Então, parece-me que há uma dúplice via discriminatória. O que me preocupa aqui é a dupla exclusão: é a exclusão de quem não recebe nem o medicamento que o protocolo, a lei impõe o fornecimento e a dupla exclusão de que essa pessoa não poderia, então, buscar o Poder Judiciário, seja por via coletiva, seja por via individual. É dupla exclusão do sistema: ou seja, temos que nos conformar a sermos atendidos na medida do sistema existente e não sermos atendidos, ainda que a lei, os protocolos imponham esse atendimento. Parece-me que essa discussão, portanto, demanda um aprofundamento maior e nossa indicação que às vezes é promovida seja de que lado possamos estar. O direito à saúde não é o direito de igual acesso à falta, ainda que parcial, de bens e serviços essenciais em matéria de saúde, ainda que disponibilizados pela legislação existente."
Nesse texto o Juiz ressalta que não raro faltam medicamentos previstos no protocolo do SUS. Assim, segundo o Juiz, o imenso número de processos com pedidos de tratamento de saúde não é por responsabilidade dos autores, mas do próprio Estado. E essa análise se confirma com as reiteradas constatações do CNJ sobre os maiores litigantes do Brasil, sendo os setores públicos da esfera federal e dos estados responsáveis por 39,26% dos processos que chegaram à Justiça de primeiro grau e aos Juizados Especiais entre janeiro e outubro de 2012. O setor público federal e os bancos respondiam sozinhos por 76% dos processos em tramitação nesse ano (https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica).
Assim, acredito que você tem razão quando diz que a integralidade precisa ser discutida, mas acho que o foco dessa análise deva recair sobre as ações (em todos os sentidos possíveis) do Estado, e não dos cidadãos que buscam seu único recurso para ter a vida garantida.
Abraço carinhoso,
Débora