I Encontro Estadual da Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME – São Paulo
Aconteceu ontem na sede do CRP-SP o I Encontro Estadual da ABRASME. Mais de duzentas pessoas lotaram o auditório do conselho para conversar sobre as Conjunturas das Políticas Públicas no Brasil
Abertura: Boas vindas e Apresentação da ABRASME
Paulo Amarante (Vídeo)
15h30
Mesa: Os desafios da Saúde Mental no Estado de São Paulo
Rosana Onocko
Antonio Lancetti
Silvio Yasui
17h
Eleição Comissão Estadual
Formação grupos de trabalho temático
Elisa Zanerato Rosa ( CRP-SP ) e Fábio Belloni ( ABRASME ) coordenaram a mesa e abriram os trabalhos com o vídeo de Paulo Amarante, com uma mensagem que congregou a todos para a ativação de redes em torno do cuidado em saúde mental no estado.
Rosana Onocko ( foto ), "sanitarista com formação médica", como ela própria se apresenta, marcando com isso um lugar diferente.
Reproduzimos aqui uma parte da sua fala:
O velho adágio "a luta continua" nunca foi tão contemporâneo. São Paulo precisa de luta redobrada pois as tentativas de recuar para modalidades retrógradas de cuidado com a saúde mental estão muito presentes. É o estado com o maior numero de leitos em hospitais psiquiátricos.
Os métodos de cuidado das comunidades terapêuticas se pautam pela mesma reclusão e regimes de trabalho escravo, como deixam entrever as recentes denúncias de usuários.
O Ministério da Saúde estimulou pesquisas sobre a saúde mental do ponto de vista da cobertura, implantação das políticas públicas e, com isso, temos muitos dados onde nos amparar. Há problemas, mas também avanços.
A revista Lancet publica indicadores de saúde mental no mundo todo e toma o caso brasileiro como um dos que mostra avanços. Hoje o desafio de trabalhar de forma menos médico-cêntrica é disseminado pelo mundo afora. A política de leitos em hospitais gerais se alastrou.
Temos rede rica em termos de variabilidade de categorias não médicas.
Saúde mental não é psiquiatria somente.
Os médicos cubanos, cuja formação enfatiza a saúde mental no território, estão assustados com a fragilidade dos laços sociais nestes territórios. Testemunham o vazio de trocas afetivas e sociais, as vidas empobrecidas por falta de compartilhamento.
Rosana saúda a Abrasme em São Paulo e lembra que "se não combatermos, seremos combatidos".
Sílvio Yassui:
Sou um dos signatários da fundação da ABRASME e, pela via da supervisão institucional, tenho acompanhado os desafios e retrocessos de um estado que já foi exemplar em termos de experiências inaugurais no cuidado em saúde mental. A experiência de regionalização nos anos 80, com o desmonte do Hospital do Juquery, o caso de Santos e o Apoio Paidéia em Campinas nos anos 90 foram emblemáticos.
Hoje viramos resistência, como por exemplo no Movimento "Resiste Campinas". Precisamos ocupar os espaços e fazer política no cotidiano dos serviços. A psiquiatria como centro do lugar de cuidado em saúde mental aparece nas modalidades de ambulatórios de psiquiatria e psicologia superlotados e com medicamentos como modo hegemônico hoje.
O modo de subjetivação que toma a medicação como resposta mais frequente e "natural" para o sofrimento psíquico deve ser um desafio a ser enfrentado por todos para a invenção de novos modos.
O estado somos nós e reencantar o cotidiano, reinventar o que fazemos, é o caminho. Os trabalhadores da saúde precisam de um espaço de palavra e criação de potência no trabalho.
Fala da atenção não como locus mas como modo de operar, ethos, valor e acontecimento. Termina relembrando um conto de Galeano, "A Função Da Arte", onde um filho pede ao pai que o "ajude a olhar". O conto como ferramenta para se pensar no acompanhamento aos jovens trabalhadores da saúde pela produção de saber dos mais "velhos". Belíssima lembrança de Sílvio.
jovem trabalhador na platéia
foto de Fábio Belloni ( facebook )
Lancetti:
Constata alegremente que estamos aqui numa numa sexta-feira à tarde com mais pessoas que cadeiras.
Inicia a sua fala lembrando que São Bernardo é uma das melhores experiências de cuidado do país. Assim como Sílvio, pensa que é preciso termos instâncias para conversar. E perder o medo de disputar sentidos com os modos mais reacionários de intervenção. Se Ronaldo Larangeira afirma que o uso do crack é doença recidivante, onde quem usa a droga uma vez nunca mais vai parar, afirmaremos as novas abordagens como o programa "Braços Abertos". Mudar o foco para a garantia de direitos como cuidado e não na droga como alvo de combate.
Homenageia José Ruben de Alcântara Bonfim ( na platéia ), outro sanitarista de formação médica, chamando-o de mestre e referindo-se aos ensinamentos deste sobre a "epidemia" do crack. Zé Ruben atua na assistência farmacêutica da Secretaria Municipal de Saúde e colocou na roda a iniciativa de criação de portaria ( 986/2014 ) para a regulação da prescrição de metilfenidato em São Paulo. A prescrição generalizada deste medicamento pode ser considerada como o emblema de manicomializacão da infância hoje. Outra questão importante é a recente institucionalização de crianças e adolescentes autistas nesta escalada da medicalização da vida.
São Paulo agora tem uma Comissão Estadual da Abrasme para aquecer debates sobre a Política de Saúde Mental.
Leo Pinho no facebook hoje:
Diversas regiões do Estado de SP se fazem presentes no I Encontro Estadual da Abrasme SP. Todos que falaram deixaram claro a necessidade de reagruparmos, de irmos para ação. #LutaAntimanicomial SP #VemparaLuta
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) E A INICIATIVA EXEMPLAR DA SMS DE SÃO PAULO
A recente Portaria no.986/2014 da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo vem de forma responsável regulamentar o uso da metilfenidato no tratamento de crianças e adolescentes diagnosticadas com o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Tal procedimento se adequa às atribuições do poder público em defender a saúde pública da população. Dada a dimensão que o TDAH vem adquirindo, as condições para prescrição e distribuição de metilfenidato (Ritalina) passam a ser rigorosamente restritas em diversos países. Entre as razões, porque a Ritalina é classificada entre os ‘narcóticos’ a serem regulamentados, sendo considerada uma droga com alto potencial de abuso e com severa susceptibilidade para provocar dependência psicológica e física.
Desde meados da década de 1950, nossa sociedade passou a se acostumar a tratar com psicofármacos seus adultos com diagnósticos conhecidos ao longo da história da psiquiatria. Mesmo que se acumulem as evidências dos efeitos deletérios das drogas psiquiátricas na maioria dos adultos que as consomem, quando o tratamento psicofarmacológico é comparado com os métodos psiquiátricos empregados na era dos grandes manicômios o senso-comum, considera ser dos males o menor. Entretanto, desde a década de 80 começa-se a deparar com um fenômeno relativamente novo: a prescrição de drogas psiquiátricas a crianças e adolescentes. A cada ano aumenta significativamente o número de diagnóstico psiquiátrico e de prescrições para essa faixa etária. Em 2013, segundo recentes dados oficiais dos Estados Unidos, aproximadamente 1/5 adolescentes no ensino médio recebeu o diagnóstico médico de TDAH, e 11% das crianças no ensino fundamental receberam esse mesmo diagnóstico. Dessas crianças e adolescentes diagnosticadas com TDAH, 2/3 receberam prescrições de estimulantes como Ritalina. Esse mesmo fenômeno ocorre em diversas outras sociedades. Na Inglaterra o número de drogas prescritas para o TDAH (metilfenidato, incluindo a Ritalina) disparou para mais de 50% em seis anos.
Os efeitos deletérios desse fenômeno vêm sendo analisados e denunciados por cientistas de diversas áreas relacionadas à saúde pública, autoridades sanitárias e em artigos que chegam ao grande público através da grande imprensa. Ao se diagnosticar TDAH e prescrever tratamento com drogas psiquiátricas, o que se está promovendo é colocar um número significativo de crianças e adolescentes em uma trajetória que as levará a uma incapacitação por toda a vida. A justificativa? Atingir resultados imediatos para problemas ordinários e que até então não eram objeto da medicina.
A portaria da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo está coerente com as inúmeras evidências científicas acumuladas ao longo dessas três décadas de tratamento do TDAH. Que os números das crianças e adolescentes diagnosticadas com TDAH pareçam como aqueles de uma epidemia, para que se justifique a medicação psiquiátrica da infância e da adolescência em níveis sem precedentes e injustificáveis. Que o crescimento de diagnósticos de TDAH e prescrições de estimulantes ao longo dos anos coincide com a enorme campanha da indústria farmacêutica para divulgar esse transtorno e promover as drogas junto aos médicos, psicólogos, educadores e famílias. Que as chamadas ‘pílulas milagrosas’ funcionam muitas vezes para não se modificar comportamentos socialmente comuns, ainda que indesejáveis, como a negligência dos adultos com as suas crianças e adolescentes e a impaciência frente a seus incômodos e esperados modos de ser. Que a sociedade tem sido objeto sistemático de propagandas enganosas veiculadas na televisão e nas revistas para o consumo popular, onde se afirma inescrupulosamente que o esquecimento infantil e as baixas notas escolares são transtornos mentais e resultantes de desequilíbrio químico no cérebro, e que portanto deve-se consultar um clínico especializado. Que é comum médicos, pesquisadores, profissionais de saúde em geral, serem pagos pela indústria farmacêutica para publicarem pesquisas e fazerem declarações a encorajar colegas a fazer diagnósticos sem limites. E, muito em particular, que são inúmeros e variados os efeitos iatrogênicos produzidos pelo tratamento.
Sem dificuldades, poderíamos ampliar com inúmeras outras referências científicas a revisão bibliográfica proposta na Portaria no. 986/2014 da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, mas duas referências merecem destaque. A primeira é de Allen Frances[1], um dos psiquiatras americanos mais reconhecidos mundialmente, que foi o responsável-chefe da edição do DSM-IV. É ele mesmo quem diz que o diagnóstico TDAH cria uma falsa epidemia: “o DSM-IV contribuiu para três falsas epidemias em psiquiatria – o excesso de diagnósticos de déficit de atenção, autismo e transtorno bipolar ” (p. 139).
A segunda citação é a do renomado neurocientista estadunidense, Bruce D Perry [2], em uma recente declaração feita em encontros com autoridades sanitárias da Inglaterra. Publicadas pelo The Guardian e The Observer, eis alguns trechos: “a hiperatividade nas crianças não é uma doença real”; o diagnóstico TDAH não passa de uma “descrição a delinear uma ampla gama de sintomas”; “se observarmos como se chega a esse rótulo, qualquer um de nós a qualquer momento se encaixaria em ao menos um par desses critérios". Perry acrescentou que os clínicos estão muito rapidamente prescrevendo psicoestimulantes a crianças, “quando as evidências apontam não existirem qualquer benefício a longo prazo”. Bruce Perry afirma ainda (ipsis litteris): “tomar uma medicação influencia os sistemas de formas que nem sempre compreendemos. Eu tendo a ser muito cauteloso com essas coisas, principalmente quando a pesquisa mostra que outras intervenções são igualmente eficazes e ao longo do tempo mais eficazes e que não têm nenhum dos efeitos adversos.”
Com efeito, a perspectiva da Portaria da SMS de São Paulo merece da comunidade científica e da população geral o mais irrestrito apoio, na medida em que visa proteger a nossa população das consequências patogênicas do tratamento não criterioso dos comportamentos rotulados como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. A SMS de São Paulo se coloca como exemplar na construção democrática de formas de abordagem dos problemas que afetam a saúde da nossa população, ao reconhecer o papel central do usuários dos serviços. As pessoas têm o direito de serem informadas acerca das intervenções médicas e psiquiátricas e de serem envolvidas nas discussões com respeito às opções de tratamento. Na medida em que crianças e adolescentes não estão na posição de darem consentimento informado para o tratamento da mesma forma como os adultos, a responsabilidade da sociedade é ainda muito maior.
[1] Allen Frances. Saving Normal. A revolta de um insider contra a falta de controle do diagnóstico psiquiátrico DSM-5, a Indústria Farmacêutica e a Medicalização da Vida Cotidiana. USA: William Morrow, Harper Collin Publishers, 2013.
[2] Bruce D. Perry, in Daniel Boffey, Children’s hyperactivity ‘is not a real disease’, says US expert. The Observer, Sunday 30 march, 2014. Artigo consultado em 21/7/2014 (https://www.theguardian.com/society/2014/mar/30/children-hyperactivity-not-real-disease-neuroscientist-adhd