A saúde pública não está nua

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Quando alguém menciona uma aula de medicina, a imagem que em regra nos vem à cabeça é de um grupo de alunos em torno de uma mesa com um corpo disposto, de onde esses alunos lhe tiram as partes para analisar cada qual separadamente. A visão do estudo da vida nua – destituída de qualidades, um simples conjunto de órgãos e tecidos.

Mas as aulas que assisti durante o mês de julho sobre "Comunicação e Saúde" ministradas pelo Professor Ricardo Teixeira, para as Residências em Medicina de Família e Comunidade, Medicina Preventiva e Multiprofissional em Saúde Coletiva e Atenção Primária à Saúde, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, foi algo muito diferente da imagem referida.

No final de junho havia assistido a uma aula com alguns dos mesmos alunos, e na ocasião sentira que as pessoas que ali estavam viam muito além de um tecido corporal frio. Várias reflexões do texto "O espelho em que me reflito: compartilhando saberes com meu médico" sobre o livro de Antonio Pithon Cyrino, foram retiradas dessa primeira aula, que me fez pensar sobre muitas questões pessoais do autocuidado em diabetes, e que me passou o primeiro tipo de conhecimento sobre eles, através da imagem que projetaram sobre mim.

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"Lição de Anatomia" de Rembrandt

Diferentemente do quadro "Lição de Anatomia" de Rembrandt, nas aulas que assisti as pessoas se dispunham em uma roda de conversa, em que o Professor Ricardo se colocava como um igual e, a partir dos conhecimentos da turma, dialogava a respeito do conteúdo programado para o debate. Não havia um corpo sem vida no meio da turma, mas vários corpos cheios de vida em círculo, participando de forma ativa do momento, compondo-se em noções comuns entre si, conhecendo-se pela razão.

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O curso começou falando de modelos de comunicação em saúde (primeira aula) e terminou (para mim, porque a turma ainda tem mais uma aula) debatendo os afetos e as três formas de conhecimento segundo Espinosa: imagem (efeito produzido pelo contato entre os corpos), razão (composição de noções comuns entre os corpos) e intuição (conhecimento entre graus de potência).

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Modelos de comunicação: unilinear, dialógico e estrutural (e o riscado com um xis, criado pela minha visão ruim, seria o antropofágico – "Só a comunicação nos une. Somos a mensagem").

Nesta última aula, mais filosófica do que médica, é que o debate entre médicas, psicólogas, enfermeiras e terapeutas ocupacionais (e uma advogada) mais se prolongou, confirmando em mim a noção de que aquelas pessoas, profissionais da saúde pública, enxergam os pacientes como um todo, como um ser humano individual.

Para aquelas pessoas, corpo é "um conjunto singular de infinitas partes extensivas, uma coisa singular, sob um dado espectro de relações, que é o que a caracteriza, e a que corresponde um grau de potência" (Espinosa). Não apenas porque assim definiu o Professor Ricardo Teixeira, mas porque é assim a forma como aquelas alunas tratam seus pacientes, o que se comprova com os relatos de casos em aula.

E a cada reflexão da turma com grande potencial de enriquecimento da discussão, Ricardo Teixeira, mestre vocacionado, mostrava uma espécie de "luz de potência" em seu rosto: da mesma forma que gatos ronronam quando estão felizes, o Professor Ricardo parece refletir o coração na face quando reconhece na fala do outro o desenvolvimento da democracia em ato vivo.

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Embora eu temesse não receber acolhimento pela turma por não ser exatamente uma profissional da saúde, fui acolhida como par (dotada de conhecimentos práticos que se relacionavam com os conhecimentos teóricos, e teórico-práticos, delas), e respeitada enquanto uma portadora de doença crônica algumas vezes mencionada nas conversas.

Na primeira aula, antes de relatar um exemplo utilizando o diabetes, uma das alunas me pediu licença, como se dissesse que não me via como um objeto de estudo, e que respeitava minha condição (de portadora de doença crônica). Um pouco atônita, pronunciei meu nome – "é Débora!" – como se agradecesse a ela por respeitar a minha dignidade, e depois fiquei um pouco constrangida, porque aquilo soou meio estranho. Mas o gesto dela afetou meu coração antes das palavras, que saíram assim meio a esmo.

O efeito que o contato com aquelas pessoas – mestre, alunas e aluno – provocou em mim foi de enorme esperança e otimismo em relação ao serviço público de saúde no Brasil, considerando os profissionais da saúde. Para eles, nós – portadores de doenças crônicas, não somos partes (um pâncreas), não somos doenças (um pâncreas que não funciona), somos pessoas dotadas de direitos – Débora!, somos cidadãos.

A saúde pública não está nua, porque tem em sua formação profissionais cheios de qualidades, que reconhecem nas pessoas que atendem seres humanos, profissionais que valorizam a própria humanidade.