Continuando o debate com Flavio Aguiar sobre Charlie Hebdo, tabu e laicidade
Telmo Kiguel
Médico psiquiatra
Psicoterapeuta
Estamos nos “provocando” como os que pretendem atacar a laicidade ou como os chargistas franceses?
Espero que a nossa posição seja a dos que acreditam que uma crise possa gerar um bom e novo debate.
O da defesa dos estados laicos.
Vejam o comentário do Flávio Aguiar no nosso último post:
Debatendo Charlie Hebdo, tabu e laicidade com Flávio Aguiar
Há muitas diferenças entre o debate da laicidade na Europa e a inexistência do mesmo no Brasil
Certamente este é um tema de política suprapartidária.
Mesmo sabendo que os acontecimentos possam ocorrer no espaço público/político.
Seria interessante termos líderes e partidos políticos interessados no debate público da questão.
Não temos, infelizmente, estas personalidades públicas.
Em nenhum dos poderes republicanos, sejam os de direito e os de fato.
E para confirmar isto, a Zero Hora, representante de um poder de fato, entrevistou há poucos dias um ex-ministro da Educação.
Da França.
Para falar de laicidade… na França.
Vejamos alguns pensamentos de Luc Ferry sobre os últimos acontecimentos em seu país:
“é o país da laicidade por excelência, nenhum país do mundo tendo sido mais militante que o nosso em relação à separação da religião e do Estado”.
…”devemos ter o direito de criticar as religiões, todas as religiões, mas também todos os filósofos”.
“Tem-se o direito de criticar as religiões, como todas as outras visões do mundo, o liberalismo, o comunismo, não? Ou então é o fim de toda liberdade!”
“Nunca gostei particularmente de Charlie, mas, por tomar uma frase que se atribuiu a Voltaire (equivocadamente, mas pouco importa), eu faria tudo por lhes permitir que continuem a publicar, e inclusive contra mim”.
“O Islã é o problema?”
“Não. É o islamismo fanático, o Estado Islâmico, a Al-Qaeda. Não se deve confundir muçulmano e islamista, religião e fundamentalismo fanático, e um dos desafios de hoje é justamente evitar o amálgama. Dito isso, o islamismo fanático se parece muito com o nazismo, ao menos em pontos fundamentais”.
O leitor tem o direito de argumentar, com toda razão, que o entrevistado tem preferência político partidária.
Portanto o debate ideal sobre o tema teria representantes de todos os ângulos da questão.
Inclusive os que são contra o estado laico e a favor das teocracias.
Algo que me intriga em toda esta questão da xenofobia em relação aos muçulmanos na França e em toda Europa.
Já vi algumas pesquisas sobre estas populações de imigrantes muçulmanos.
Alguém sabe de alguma que investigou suas posições em relação às teocracias e ao estado laico francês?
Muçulmanos na França mais apoiaram ou criticaram os episódios de 7 de janeiro?
Flávio: quanto aos “caras pálidas” suiços e a proibição da construção de novos minaretes.
Houve um plebiscito que foi antecedido por muitos debates públicos sobre laicidade.
Logo após ocorreram previsões (desejos de alguns?) de possíveis retaliações por parte de muçulmanos.
E nada ocorreu por lá.
Penso que o debate aberto, democrático sobre a laicidade ainda é o melhor caminho para paz.
Sabemos que o voto da maioria.. agrada a maioria.
Resta às minorias civilizadas, democráticas, progressistas aceitar os resultados das votações.
Quanto a hipótese dos terroristas internalizarem uma identidade de “inferiores” e isso determinar sua ação criminosa.
É uma hipótese arriscada pois um grande número (talvez o maior?) de atos terroristas, atualmente, ocorre entre muçulmanos.
Uma outra seria que, tendo sido educados para serem teocratas, a imigração não os transformaria em democratas laicos.
Ou conheces mais alguma?
Fonte: https://saudepublicada.sul21.com.br/
Publicado em 19/01/2015
Por Telmo Kiguel
Caro Telmo
O caso que mais me intriga nisto tudo é o de Amédy Coulibali. Ele gravou um macro-selfie, em vt, confessando sua filiação ao Estado Islâmico. Se ele foi financiado pela Qaïda, foi uma heresia. Um modo de afirmar a sua “individualidade”. Ele sabia que ia morrer, ao contrário da maioria de nós, que sabe que vai morrer… um dia. Não, ele tinha data marcada. Ainda não estava na agenda, mas era para o que ele estava se preparando. Digamos, um suicídio controlado, levando muita gente com ele, como de fato ele fez.
Dentre as teorias que citam a introjeção da inferioridade e a educação para ser um teocrata, fico com a hipótese – quase certeza – de que vivemos a “era dos selfies”, dos “individualismos exacerbados”. Assim como, segundo o Hobsbawm, já vivemos a “Era das Revoluções”, a “Era dos Extremos”, etc. Ele quis sair do anonimato. Conseguiu. Teve seus vários minutos de fama.
Hoje em dia o indivíduo, ou seu simulacro, se olha na tela, telinha ou telão, e vê o mundo à sua frente: sua imagem, para a efêmera eternidade. Isto acontece com o Amédy e também com o cidadão (?) que se olha embaçado no reflexo da tela e se põe a insultar (ao invés de criticar) o governante, o desafeto, a namorada, etc. É o suprassumo do isolamento.
Agora, alguém pôs as armas nas mãos do Amédy. Ele não as conseguiu sozinho. Alguém lhe deu dinheiro para tanto, outro alguém fez a entrega. Outro mais adiante entregou os documentos, e mais ainda um outro fêz vista grossa, ou seja, alguém e alguéns lucraram muito com isto. Dentro e fora do Estado laico. E vão ficar impunes.
Antigamente se dizia, para resolver um crime: “cherchez la famme”. Hoje, se pode dizer: “cherchez la grana”.
Já o caso dos irmãos Couachi é um pouco diferente. Órfãos, fizeram um pacto de morte. Só faltou (talvez, vá se saber) aquele ritual de cortar os pulsos e misturar os sangues, coisa hoje evitada pelo temor de doenças várias. Conseguiram: morreram como a dupla de pistoleiros ao final de “Butch Cassidy”, com o Redford e o Paul Newmann. Correndo e atirando sobre o exército contrário. Pelo menos esta é a versão oficial. Vá se saber quem imitou o filme, se a dupla ou a versão oficial. Ou ambos. Porque depois daquele atirar no policial inerme eles estavam condenados à morte. Extra-oficialmente. (E não estou justificando a covardia deles, quero deixar bem sublinhado).
O que quero sublinhar é que o Estado laico às vêzes não é tão laico assim. É laico na letra da lei, e assim deve ser de fato, mas como o Estado é a ponta (grossa, muito grossa) do iceberg que de fato governa o mundo, há gente na parte visível do iceberg e outros na parte invisível que às vezes se acha e se dá os poderes de Deus. Ou do Diabo, não sei muito bem. Mas tanto faz.