O ESCAMBO EM SÃO PAULO E UM ESCAMBITO NA PONTE AEREA

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Por Ray Lima 

 
 
O ESCAMBO EM SÃO PAULO
     
                      E  
 
                   UM                      
            
  ESCAMBITO NA PONTE AÉREA
 
 
“É duro ser poeta num país sem raiz[1]
É duro ver poesia num gigante sem nariz
É triste ser alegre no Brasil
É absurdo ser antena dessa imagem obscena
 
É apenas mundo falar para surdos usando
o código e a linguagem dos ouvintes
Mesmo assim insisto em ser poeta arriscando
como artista atento como atleta
 
Não me afeta a escassez de inspiração
A poesia (razão e raiz do meu sentir) vai
compondo essa canção além
do silêncio do centro da margem
pela periferia da imagem atrás da ilusão”
 
               

Decolando     

                                                          
          Poderíamos iniciar nossa conversa tecendo comentários sobre aspectos ou o conjunto dos espetáculos apresentados na mostra – evidentemente os que assistimos -, ou falar dos encantos e problemas de uma das maiores cidades do mundo, mas optamos por fazer uma reflexão sobre nossos voos, aterrizagens, caminhadas e rodagens durante a IV Mostra Lino Rojas, considerando nossa passada pelo Rio que acabou, como era de se esperar, ampliando as relações e as responsabilidades do Movimento Escambo, já imensas, para além do norte/nordeste.  Nós e vários companheiros (as) já havíamos participado de outros momentos representando o movimento, porém desta vez, não só um grupo maior pode participar levando seus trabalhos como recebemos uma bela homenagem. Homenagem que consolida o Escambo como um dos movimentos mais significativos da história recente da cultura nordestina e do Brasil. É curioso que tenha sido germinado e brotado do ventre árido do polígono das secas, e ao invés de buscar seu fortalecimento nos grandes centros, cresceu de dentro para fora, emergiu do interior para o exterior, onde a vida naturalmente exige um pouco mais dos viventes para existir. É um movimento de resistência profundamente enraizado na arte e na cultura popular, mas extremamente político e motivado desde seu nascimento pela contracultura da escassez e da indústria da seca. O Escambo expandiu-se sem perder ou abandonar suas raízes sertânicas, a cidade de Janduís-RN.
           
 

Um rápido recorte, uma ponte aérea.

 
          Já em São Paulo, no dia 11 de novembro/09, Júnio Santos – Cervantes do Brasil-CE; Filippo Rodrigo – Bando La Trupe-RN; Johnson Soares e Ray Lima – Pintou Melodia na Poesia –CE fomos ao Rio de Janeiro, onde transformamos o lançamento de um livro, o Lâminas, de nossa autoria, acompanhado do espetáculo de mesmo nome, em um belíssimo “ESCAMBITO” [2], promovido pelo músico e produtor Jadiel Guerra e sua companheira Jacqueline, o poeta José Terra e o Tá na Rua, com direito à bênção do mestre Amir Haddad e Maria Helena, além da presença marcante do Richardi e da dedicação e empenho do Licko Tourle que junto a um elenco de atores e atrizes maravilhosos, que participaram do início ao fim do encontro, cuidou de tudo e todos (as) com o carinho maior que possível foi. Cantamos, danças, cenopoetizamos, falamos de teatro, política, amor e economia, relembramos coisas, escambamos. Para nós, teve um sentido especial e profundo, pois vivemos no Rio muitos anos, toda juventude, e lá começamos a fazer teatro. Como colega de faculdade do nosso Licko, através do movimento estudantil e artístico, lutamos pela redemocratização do país e por liberdade, anistia, políticas públicas de cultura, democracia e cidadania plena, somando-nos a milhões de brasileiros daquela fase especialíssima da vida nacional.  Tudo isso veio à tona. E o que proporcionava essa enxurrada de memórias mais uma vez era o teatro e a cenopoesia. O encontro das pessoas, suas ideias, saberes, sonhos e fazeres a partir da arte, o Escambo em movimento, em plena ponte área, vital. Uma festa inesquecível e única, “tão única e particular quanto o um de cada um”.                         
          Acreditando que o mundo é grande e generoso como a utopia e a atitude de muitos homens e mulheres ou pequeno e mesquinho como a avareza e a ganância de poucos (as) desse mesmo mundo, concluímos esse primeiro voo, rasante, mas que na prática foi profundo, agradecendo pela oportunidade ao mesmo tempo em que dedicamos às artes de rua e a todos (as) que teimam em aventurar-se pelos espaços abertos ou aberto-acorrentados pelo poder público de alguns municípios, trecho do poema “Amputação” do poeta carioca José Terra. Um dia sugerimos que se fizesse a reforma agrária do conhecimento médico e científico, agora cremos que está na hora de fazermos a reforma agrária dos espaços públicos abertos – praças, ruas e todos aqueles que possam acomodar um grupo de artistas, acolhendo nossa alegria que gosta de rolar leve, livre e solta. Demos vida, cor e sentido às praças abandonadas, descuidadas e cheirando à morte de nossas cidades!
 
“AS GRANDES CIDADES,[3]
estranhas como os esgotos,
exibem cara de vivo,
expelem cheiro de morto.”
 
Voltemos para as ruas já! Façamos um levante com a ocupação simbólica das praças em nível nacional e ao mesmo tempo? Restabelecemos o “a praça é do povo” de Castro Alves. O intelectual, o bacharel, o menestrel, o mendigo, o pedinte, o médico, o professor, o camelô, o camponês, os sem-terra, o operário, comerciário, o carpinteiro, os sem-teto, os sem-teatro, nos esperam:
 
 Volta, Ângela!!![4]
Teu nome jorra dos meus pulmões
E se multiplica em nitrogênio,
                                   hélio, gases nobres
                                   e cabeças surdas.
Em alguma praça do Rio, “do mundo” (grifo nosso):
Saens Peña, Afonso Pena, Praça Central do Morro Agudo…
 
“Volta, Ângela
Uma outra espécie de grito
Se debate em seu peito,
Como um pássaro selvagem
Preso, pela primeira vez, numa gaiola,
Arranhando, ferindo, sem que ninguém ouça.
 
Volta Ângela!!!
Volta pra esse nosso mundo.
Ainda existe alguma esperança,
Nem tudo foi interditado.
Existem também tantas crianças bonitas:
            a noite, a praça, o riso…
Um letreiro luminoso pede a tua volta:
Veja!
A letra “L” um pouco fosca,
                                             o brilho azul…
Esse mundo precisa de você
Esse mundo precisa de brilho.
 
Volta…
São tantas crianças que nada sabem da vida.
O que será do homem de amanhã,
Se o amanhã se faz em teus dedos
                        nas tuas palavras intemporais?
O que será do futuro do nosso país…
Quando for dia de festa,
Que festa haverá sem você?
 
Ah! Olha o teu nome nesse papel…
O frio azul da caneta…
Ainda não interditaram o coração dos homens
E um verso desajeitado pula o cordão do isolamento,
Gritando por você.
 
Em algum lugar desta galáxia estamos juntos!
Não há distância entre as praças e as estrelas.
Os alicerces dos edifícios sabem
Que estamos juntos.
Se me escutas do teu exílio,
Saibas:
Que há um tempo estamos nas ruas,
Mas nossas vozes têm eco na litosfera.
 
Nas estações ferroviárias,
Os operários esperam tua volta.
Eles não sabem, mas esperamos.
Teu piano mudo te espera,
                        e a astronomia dos meus versos
Sabe que estamos juntos.
                        Enquanto não nos amordaçam,
Saibas que te esperamos.
 
 

Aterrizando

 
Chegamos e saímos de São Paulo com a sensação de estarmos vivendo o que chamamos, ainda em 1991, no início do Movimento Escambo, “o impossível realizável”. Naquela época perguntávamo-nos como praticar e viver arte na geografia da sede e da fome, sem recurso algum, sem política pública de cultura, onde as necessidades básicas da população sequer estavam sendo atendidas minimamente? E, claro, para a grande maioria teatro, por exemplo, era um item totalmente desconhecido da sexta básica. Imagine, como fazer teatro sem público nem teatro? Ou melhor, como introduzir um novo item no cardápio cultural do cotidiano de um povo sem empurrá-lo goela abaixo, quis dizer: cérebro adentro? Quando começamos a compartilhar essas e outras interrogações com a população, ouvindo também suas queixas, sonhos e inquietações e, na medida em que íamos conversando, tentando construir saídas e dar respostas aos problemas juntos – cada um a seu modo embora sempre refletindo e repensado cada ato praticado na rua ou no roçado, na escola ou nos bares, na feira livre ou no hospital, durante a estiagem ou no ano bom de inverno – entendemos que como artistas tínhamos uma missão importante a cumprir. Contudo, percebemos que o papel e o sentido da nossa arte também era uma construção coletiva. Ou seja, ela não deveria partir ou ter sentido apenas para os artistas, mas para o lugar aonde ela vai ou para a sociedade a que se destina ou se origina. Ali nos demos conta, artistas e população, da cultura, do teatro, da poesia como uma necessidade tão básica quanto um cantinho para dormir, o feijão e o arroz, a carne e o sal, o café e o açúcar, o terreno para plantar e a água para beber, criar um bicho, gerir e sustentar a vida. A questão era como começar um novo cultivo de forma sustentada, sem tirar o foco das antigas culturas. À luz de tal percepção coletiva em que a arte aparece como fonte, elemento básico gerador de energia e processos vitais, logo descobrimos saídas sui generis para situações aparentemente insolúveis. Não havendo equipamentos culturais de que necessitávamos como um teatro, o que fizemos? Em uma roda de debate com as crianças e adolescentes com quem trabalhávamos, chegamos à conclusão de que se decidimos fazer teatro em um lugar onde não existia teatro, deveríamos sair em busca dele. Dividimos nosso tempo de oficina entre o fazer e o caçar teatros pela cidade e entornos. Entorno em Janduís significa caatinga pura, com suas belezas e desafios. No primeiro cortejo pela cidade mapeamos três espaços: a praça central, a pedra de seu Liu Liu, o pátio das roladeiras (Largo do Bastim) e o pátio do Vaporzão, no bairro da Floresta.[5] Em seguida partimos para o caminho do mato. Nestas viagens de pesquisas aproveitávamos para ensaiar, discutir a vida e debater a fome, a seca, as utopias de cada um e as perspectivas de mudança da realidade. Comportávamo-nos como se estivéssemos fora do lugar. E de fato estávamos, mas o exercício era mais delicado e de muita profundeza. Uma autorreflexão, incluindo o mundo – o estar nele e a possibilidade de ser com ele e mudá-lo quando preciso. Não sabemos se era isso. Algo assim. Surpreendentemente sem saber estávamos sendo freireanos. Na verdade, os teatros de pedra eram nosso lugar de encontro de nós com nós mesmos, de mergulhar no universo dos porquês, de plantar e cultivar boas perguntas, eram nossos canteiros de indagações sobre nossa condição de humanos naquele estágio da vida. E as respostas? Bom, as respostas poderiam vir hoje, amanhã ou virem ao longo da nossa história ou nunca. Há perguntas que não precisam de respostas. São as “perguntas-mãe” que se alimentam de outras perguntas até o infinito. Felizmente muitas deram as caras imediatamente, outras devem estar por aí sendo ruminadas. Uma coisa era certa: ninguém mais tinha desculpas para alegar que não cultivava teatro por falta de teatro. Foram momentos de prazer, sofrimento e construção de importantes alicerces para os projetos de vida daqueles (as) meninos (as), hoje pais e mães de família e, em certa medida, gestores da cidade. Em curto espaço de tempo foi possível mapear entre oito e dez teatros de pedra, cada um mais lindo e deslumbrante que outro. Os mais famosos e por nós visitados localizam-se no complexo de teatros naturais de pedra da fazendo Boa Vista (ver fotos:wcenopoesiadobrasil.blogspot.com). Com os teatros de pedra, as praças, ruas e sombras de árvores sertão adentro viria, dois anos depois, em 1991, a ser inaugurada uma outra etapa dessa história com a deflagração do Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Mas requereria demasiado tempo, deixemos para outro dia.
Sim, o público? Ora, o público foi garantido desde quando começamos a pensar a vida e seus desafios; a descobrirmos juntos o porquê da arte em meio a tanta aridez. Seria como se fosse uma chuva especial de umedecer corações de pedra, de lavar a alma dos viventes para o florescer de viçosa força, anunciando a colheita de conquistas e transformações que estariam por vir? A fome e a sede em Janduís, mais do que um problema comum – fomentadora da cultura de dependência promovida pela indústria da seca – passou a ser um tema gerador de posturas críticas frente à realidade e aos contextos desfavoráveis associadas à busca de superação:
           
“A fome, indústria cega e daninha, há de ser[6]
o instrumento maior de transformação, tinta e pincel,
a reflexão, o painel sobre a eterna falta.
 
Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda.
A inteligência carcomida pela força da moeda
será o túmulo dos canibais de consciência.
 
A estiagem haverá ser o nosso eterno objeto de estudo
e a resistência nosso princípio nossa viagem.”          ‘
 
E a arte cada vez mais se tornava ferramenta de problematização da realidade, das coisas da vida e do lugar. Neste contexto árido, extremamente injusto e violento, nasceu o Escambo. Talvez por esta razão se caracterize como um movimento solidário e de resistência cultural.
Por isso, agora pensávamos o tempo todo como seria refletir sobre nossas artesanias numa perspectiva popular na maior metrópole do país? Estreando e abrindo a IV Mostra Lino Rojas com a peça “Cabeça de Papelão” à sombra do prédio onde se deu a Semana de Arte Moderna? Uma cidade mergulhada na pós-modernidade onde a indústria cultural, sofisticada e enriquecida com o tempo, devora a criatividade popular para transfigurá-la e reproduzi-la em forma de mercadoria globalizada, enfraquecendo-a ou apodrecendo de vez nossas raízes, destituindo-as de força e sentido. E em seu lugar fazendo nascer a cultura da repetição, da produção em série ou da caricaturização de nossos sotaques mais genuínos. Como pensar-fazer coletiva e solidariamente arte popular numa cidade descentrada do humano ou centrada na segmentação (para não dizer segregação) social, cultural e econômica; na fragmentação de suas potências e possibilidades inteiras ou em seu conjunto? Como falar de movimento onde é difícil se mover? Onde, apesar do imenso arsenal de tecnologias de comunicação e informação, não é fácil se comunicar, se fazer entender? Será que daria para fazer um paralelo entre a máxima que diz que o excesso de luz impede a visão e esta: o excesso de possibilidades de comunicação e informação acaba nos levando a não comunicação ao não entendimento do outro? Em Janduís a falta de quase tudo era o excesso ou poderíamos encontrá-la na própria luz solar. Dito de outra maneira: “ O nordestino sucumbe ao excesso de energia solar. O excesso de luz ofusca o brilho do homem e esconde sua alma, sua potência de ser.” [7] Diante de tantas ponderações que arte caberia em contextos como o de São Paulo? O teatro popular ainda é possível em lugares assim? Qual o alcance real do eco de nossas vozes, de nossos coros? Quem poderia se interessar em nos ouvir/ver? Por que o fariam ou fazem os que nos assistem quando estamos nas ruas? Que sentido fazemos para este mundo e as pessoas? E da forma como tem sido ou está sendo que sentido tem para nós artistas e como o (re)significamos?
Ao desembarcar em Sampa nos pomos a pensar em que efetivamente aquele modesto movimento cultural, o Escambo Popular Livre de Rua, nascido de um ato de solidariedade a um povo que vivia em uma pequenina cidade do polígono das secas poderia servir ou contribuir com o movimento de  uma grande metrópole. Por que a decisão de homenagear essa singela experiência? O que esperam, o que querem de nós?
 

O tempo limpou, até calor fez.

 
As coisas foram acontecendo e alguns sinais foram aparecendo. Não no topo dos mais altos edifícios onde pousam os helicópteros da elite “mandante” – e não “determinante”- do país. As coisas começaram a acontecer no chão diverso, trilionário e miserável; no solo da vida simples, nas ruas do centro e da periferia da cidade. Acredito, sem maiores ilusões, que quem determina o presente e o futuro de um país é seu povo e não uma pequena elite que é parte dele, porém acha que manda em tudo. Talvez essa maioria não saiba que é tão poderosa, mas sem dúvida é esse gigante quase sempre adormecido que determina o que ou não uma sociedade sempre – para melhor ou para pior, aceitando as manobras impostas por tais minorias insaciáveis ou as rechaçando e propondo outras mais avançadas. Também creio que isso não se dá com alguns iluminados dizendo o que os não letrados e desafortunados devem ou não fazer, ditando o paladar: da culinária à indumentária; da profissão à religião; da política à estética. Em alguma medida experimentamos essa lógica em algum momento da nossa história com a melhor das intenções e não funcionou. Levar cultura para o povo… bem, Paulo Freire tem muito a nos dizer sobre tal pedagogia ao criticar a educação bancária, infelizmente ainda muito em voga nas escolas de nosso país.
Sim, os primeiros sinais de que falava. Fomos recebidos por artistas-trabalhadores dos grupos que organizaram a mostra com muita simpatia e cuidado e daí não nos faltou mais aconchego e atenção. Também pudemos perceber que não éramos uma exceção, todos que chegaram mereceram o mesmo tratamento, o que além de justo demonstra coerência, respeito e cuidado com o outro, não importa quem. Depois a escolha dos locais de apresentação, fortalecendo o trabalho dos grupos e valorizando a população local e periférica, sem desprezar o centro da cidade onde nos alojamos e por onde circula muita gente que trabalha e ou vive por aquelas cercanias. Não há dúvida que as visitas às sedes do União e Olho Vivo e demais grupos, somadas às intervenções nos bairros das zonas leste, sul e norte tiveram o sabor da luta e do quanto esses territórios carecem do aprofundamento e da ampliação do trabalho desses atores. No fundo, as grandes referências – no Escambo, no Escambito do Rio ou na Mostra Lino Rojas, no União e Olho Vivo, no Escambo ou no Tá na Rua-, o que compõe a história, o que vale e o que fica são as experiências das pessoas que ao se libertarem, associam-se  a outras para amar, criar, libertar e reinventar o mundo.
Talvez hoje a prática cultural a que nos referimos aqui signifique uma estratégia de debate e luta política por mudanças estruturais e sociais no Brasil das mais relevantes. Diríamos mais, liberta dos vícios das facções partidárias, envoltas por crises de identidade e abandono da ética, com raras exceções. Os modelos de gestão pública e do legislativo brasileiros acabam funcionando como escolas poderosas de corrupção e injustiça que produzem o sentimento de uma falsa nação difícil de crer ou defender. Aí somos tragados e tentados por uma lógica que nos induz a juntar-se ao outro apenas quando rola interesses individuais (alguns mesquinhos, repugnantes), muito embora para manter as aparências continue se falando em nome dos representados, da coletividade, do bem do país e das grandes causas da humanidade. Vemos revelado neste comportamento que a democracia representativa cumpriu seu papel, mas está obsoleta. É possível que já tenha nascido assim.
Estamos numa encruzilhada. Cabe-nos escolher o que mais se afina com nossas utopias e práticas. Daí pensarmos que os movimentos populares no Brasil, especialmente os de teatro, de cultura e educação popular têm desafios e responsabilidades com diversos caminhos a trilhar de acordo com a singularidade de cada lugar ou região. Sem dúvida, o fato de estarmos buscando construir espaços para compartilhar nossas práticas e refletir sobre elas já diz muito. Se há problemas de relações entre grupos, concepções estéticas e diferentes práticas (por influência de cunho ideológico-partidário? (nada contra os que ainda apostam nesse tipo de organização e luta política, não importa)), de modo nenhum que tais diferenças nos impeçam de insistir, avançar e ganhar mais autonomia e capacidade de diálogo entre nós e junto às populações dos territórios onde atuamos. Pelo contrário, pode estar aí nossa maior riqueza. Esse deve ser o nosso lugar de encontro, estudo e produção do comum. Por que nos dá ao luxo de negarmos a diversidade dos saberes e das experiências de luta pela liberdade e dignidade humana? É um dever de inteligência estar sempre escutando, observando, dialogando, buscando o outro para conhecermos e nos reconhecermos em tais diferenças. Sejamos atores teatrais, sejamos atores da vida, sempre aprendendo a ser mais e humanamente melhores… Aliás, não costumamos fazer essa diferenciação. Principalmente depois que um trabalhador da arte do Bom Jardim, o Paulo Roberto, escambista da periferia de Fortaleza, onde são mortos de 15 a 20 jovens e adolescentes por semana, disse: “da arte que vivo à arte que faço.” Não sei mais se teria ou a que distância estaria o limite entre vida e arte, ser humano e artista. Se a vida cotidiana não estiver inserida na arte que fazemos e esta não couber em nosso projeto de vida e de sociedade, seja quando e onde for, possivelmente estejamos carregando fardos enormes e pesados com práticas e relações de conflito entre o ser e não ser, improdutivas e insustentáveis. Quanto às questões políticas, por um lado, estas demandam estratégias muito específicas e cada estratégia inevitavelmente têm que dialogar com as contradições locais, as condições ambientais, os contextos históricos, econômicos e sócio-culturais de cada grupo em seu lugar de atuação. Por outro lado, nos é permissível até replicar e universalizar princípios, mas as estratégias são renováveis e no máximo adaptáveis. Daí a importância do diálogo como pauta permanente e do “escambo” como estratégia de viabilização dos nossos encontros, o que ora fazemos. Do encontro desprendido, motivado pela intenção e o propósito de compartilhar com o outro experiências e conhecimentos. Primeiro, para darmos a conhecer nossos modos de criar e recriar o mundo – como, porque e o que produzimos. E, segundo, para não cairmos em repetições desnecessárias e mortais para a criatividade humana, além de ficarmos mais sabidos e fortalecidos em nossas práticas e lutas.
Nos anos 60 e 70 do século passado, a luta travava-se pela liberdade, pela democracia e pelos direitos humanos negados e reprimidos. Hoje, cremos que, além disso, a luta deve ser também contra o vazio, a letargia da sociedade diante do embrutecimento das relações humanas e a inoperância do estado em relação aos problemas coletivos graves das cidades e do planeta. É bom nos situarmos em relação ao conceito de estado. De que estado estamos falando? O que liberta, acolhe e cuida de todos os cidadãos e cidadãs? Ou o Estado criminoso controlado pelo poder de capital que extermina crianças, jovens e adolescentes após iludi-los e ludibriá-los com a farsa do consumo a todo custo, criando monstros ferozes, sem se perguntar quem os criou, justificando agora que devem ser exterminados porque ameaçam a sociedade? Daquele Estado que estimula a destruição do meio ambiente e depois finge que vai recuperá-lo através de projetos e obras de fachada? Ou ainda do Estado precário que é capaz de mandar prender um camelô, proibir manifestações artísticas populares e encarcerar a alegria das ruas, mas se mostra incapaz de investir maciçamente em cultura e educação ou resolver o problema das desigualdades sociais e de questões seculares como saúde, moradia, trabalho e vida digna para a população? O Estado criminoso é aquele que tende a se apropriar das riquezas naturais e da capacidade inventiva e criadora de sua gente, transformando-as em produto interno bruto que converte o poder criativo de muitos em poder aquisitivo de poucos. Desse Estado vassalo do poder de capital não precisamos querer mais. É possível um outro Estado? Por que as riquezas naturais e as cidades que nos pertencem continuam sendo controladas (devastadas) para atender às demandas e à insaciabilidade de alguns coronéis de asfalto ou dos paraísos fiscais? Por que só criamos coragem de ocupar os espaços públicos quando nos encontramos em estado de desespero? Não seria mais adequado ocupá-los justamente quando temos o mínimo de estrutura e plena consciência da necessidade de ocupá-los com o fim de democratizá-los e fazê-los acessíveis a todos (as)? Qual o espaço específico dos artistas populares? Dependendo de nossa capacidade de perfurar as camadas espessas instituídas pelas elites dominantes, da velocidade e potência com que nos deslocamos podemos ir além do próprio solo que pisamos e do ar que respiramos, muito além do imaginável.
Neste sentido, o que fazer para mapear e combinar nossas potências e torná-las forças concretas de transformação em todos os cantos. Assim, cada espetáculo ou intervenção artística pode não significar, é verdade, uma mudança imediata em contextos de miséria e violência, não obstante representa um sopro de animação no ouvido da alma de cada ser que nos espreita; um despertar, um toque interior na sua condição de gestor de si mesmo e reinventor do mundo.
Portanto chamo atenção para a necessidade de migrarmos de uma sociedade adormecida, adoecida e “mortífila”, amiga parceira da violência, reprodutora da cultura de morte, para uma outra de ação criadora/libertadora e cuidadora da vida. Transformar espaços de violência em espaços de produção vital; produto interno bruto em alimento da leveza interior e da justiça planetária onde todos possam ler, crer, criar; ser e viver com dignidade aonde for e quiser. Como dizemos em uma cantiga:
 
“Pase lo que pase,
 pelo eco da utopia
pase lo que pase,
me hago en sueño, faço amor.”[8]
 
Gente desculpe-nos. O que caberia na frase – “quando abrimos os olhos, vimos que estávamos diante de um baita de um escambo em plena São Paulo de Adoniran e Mário Andrade” – contamos quase uma história. Porque citamos Mário de Andrade. Somente o fato de ele encarar de frente uma viagem de 280km de Natal para Campo Grande-RN (cidade situada a 18km de Janduís) com estradas e condições muito precárias na época demonstra um amor ao que fazia unido a esforço, compromisso, vontade de se comunicar, pesquisar e conhecer o Brasil e a cultura de seu povo absolutamente admirável. Não me recordo onde lemos sobre isso e que idade ele tinha. Mas deve ter sido uma aventura e tanto. No mesmo período ele teria contribuído com mudança de visão do folclorista Câmara Cascudo, como pesquisador e intelectual, em relação à cultura popular. Não sei por que lembramos isso agora. É muito simbólico, não? Pois bem. E nós? Considerando os obstáculos naturais de um evento em um lugar de tamanhas proporções, construímos ambientes de comunicabilidade seja entre espetáculo e público, seja entre nós. Noutros casos nem tanto, talvez para manter viva a chama das contradições, dos paradoxos, confirmando mais uma vez que as regras têm suas exceções e que a vida e a arte são feitas de uma diversidade imensurável.
A IV Mostra Lino Rojas nos mostrou também que as pessoas não se comunicam, às vezes, não por falta de oportunidade ou porque as cidades são grandes ou pequenas, simples ou complexas, mas por não quererem, por escolha própria. Juan Carlos Tedesco, uma vez disse: “as pessoas se comunicam quando querem.” Naquele momento achamos óbvio, mas depois vimos que não. Estávamos em Buenos Aires, um grupo de coordenadores de projetos sociais, discutindo a possibilidade de continuar a Iniciativa Comunidad Latinoamericana de Aprendizaje, envolvendo nove países da América Latina e Caribe, e seguir para além dos apoios recebidos de uma fundação americana e da UNESCO e não conseguimos. Aliás, não logramos sequer concluir a reunião que fazíamos paralelamente ao encontro oficial. Portanto, a experiência do Movimento Escambo mostra que seja em São Paulo, no Cairo, em Pequim ou no sertão de Janduís, quando queremos, fazemos acontecer. Quando não, mesmo dispondo dos recursos e da estrutura adequada nada acontece. Para tanto deve haver desprendimento, consciência da nossa incompletude e necessidade do outro, vontade política, desejo de se comunicar, escambar. Conhecer novas formas de fazer e pensar teatro, caminhar e ver por dentro a vibração das estruturas dos grupos de São Paulo, suas estratégias de luta e organização, sentir o impulso de suas forças e avanços em territórios ocupados, no âmago da gente e das expressões simbólicas da cultura nordestina foi demais.
 

Aterrizando

 
O que produzimos e disseminamos no mundo, mantidas as singularidades e modos de fazer diferenciados, guardam muitas semelhanças. Daí nossa arte trilhar pelo caminho do estudo e da compreensão do outro e não pela arrogância e intolerância.
Não temos dúvida de que a arte é um caminho inseguro e perigoso para nos movermos e por isso fascinante e necessária. Como diria Guimarães Rosa, viver é perigoso. E se arte é arte em qualquer canto, o poder de criar e expressar o que sentimos e pensamos é de todos os humanos. O perigo de viver por sua vez é de todos os vivos. A responsabilidade de nosso fazer artístico mais que humanitária é vital, local e cósmica.
Quando de volta, desembarcamos em Fortaleza, observamos que esses voos servem para alguma coisa: sentirmos prazeres diferentes dos do chão que pisamos. Os prazeres da flutuação na atmosfera da experiência do outro. De voo em voo nos transportamos às alturas que as tecnologias, principalmente as tecnologias leves, e o que a capacidade de respiração permite, bem como para testarmos nossa disposição para aprender e a consistência do modo de vida que adotamos no solo da rua em que moramos.  Ao aterrizarmos…
 
 
CUIDADO COM CADA PASSO:
             há vida por cima, do lado,
                                  à frente,
             há vida de cima a baixo.
 
 
ENQUANTO ISSO EM VÁRIAS CAPITAIS
 
Prefeitos tranca-ruas
 
Atacam de portarias e polícia
 
Artistas e vendedores ambulantes
 
 
MAS A VIDA SEGUE NOS DESAFIANDO
 
Ou os pobres mortais é que a desafiam?
 
É quase noite e essa gente continuará
 
Teimosamente vagando
 
Descendo a ladeira de triste memória
 
Tonta
 
Rolando para cima e para baixo
 
Já sem carcaça nem disposição para viver
 
Para cima e para baixo
 
Da ladeira da triste memória[9]
 
ao VALE DO ANHANGABAÚ
 
Até não sei quando
 
Amanhã será outro dia?
 
 
É DIFÍCIL SABER O QUE SERÁ
 
Mas O TÁ NA RUA e ESCAMBAR
 
É a expressão de uma visão de mundo
 
De uma escolha política
 
Que de UNIÃO E OLHOS VIVOS
 
Alimenta-se a BRAVA gente
 
Perfuram-se Buracos D’oráculos
 
Aninham-se POMBAS URBANAS
 
Que produzem e disseminam asas
 
Trazem paz
 
Cuidando da criação
 
Do reencantamento do mundo


[1] Lima, Ray. Tudo é Poesia Vol. 1 – Queima Bucha 2ª edição – Mossoró-RN 2005.
[2] Encontros regionais ou locais definidos a partir dos congressos gerais do movimento também chamados “escambos”.
[3] Lima, Ray. Tudo é Poesia Vol. 1 – Ed. Queima Bucha – 2ª ed. Mossoró-RN 2005.
[4] Terra, José. Amputação – in Avenida Brasil – POEMAS – Litteris Ed.: KROART, RIO 2002.
[5] O bairro mais pobre da cidade na época e onde residia a maioria das crianças e adolescentes que atendíamos. Hoje, o Vaporzão (prédio abandonado de uma antiga fábrica de sabão) é a sede da Fundação de Cultura de Janduís que é presidida por um jovem de um grupo da segunda geração desse movimento.
[6] Lima, Ray. Nhandupoiema. Queima Bucha – Mossoró-RN 19994.
[7] Lima, Ray Lima. Impossível realizável – in O PÃO – Ano 1 – Nº 5 – Fortaleza, 24 de Dezembro/1992.
[8] Lima, Ray. Pelo eco da utopia nosso ser se faz sentir. wwwcenopoesiadobrasil.blogspot.com
[9] A Ladeira da Memória, muito famosa, foi um dos espaços utilizados  para a apresentação de espetáculos durante a IV Mostra Lino Rojas, no centro da cidade, próximo ao Vale do Anhangabaú. Lá havia muitas crianças e adolescentes em situação muito precárias e consumindo drogas como em vários pontos de São Paulo. Algo deprimente que nos tocou muito. Vê a meninada se matando tão de perto, tão depressa. Enquanto isso o prefeito, o governador, os empresários posando nas alturas, sem pisar naquele chão de sua gente abandonada. Mais triste ainda é saber que não se trata de um privilégio da maior capital do país.