CARTA À SECRETÁRIA DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO – Por Amir Haddad

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Queridos(as) amigos(as), não poderia deixar de compartilhar esta carta dirigida à secretária de cultura do Rio de Janeiro, Jandira Feghali, pelo diretor teatral Amir Haddad, do grupo Tá na Rua. Vejam que beleza:
 
 
 
Senhora Secretária

Fiquei feliz por receber resposta desta Secretaria às questões colocadas por mim em minha carta aberta. Acho que assim estaremos dando a cidade um exemplo de diálogo e cidadania.

Antes quero reafirmar a senhora que meu impulso não é de maneira nenhuma beligerante. Não me move nenhum sentimento agressivo ou antagônico. Pelo contrario, reconheço na senhora uma amiga e uma parceira na luta pelo crescimento e desenvolvimento do povo brasileiro. A cara do inimigo é bem diferente.

O que me interessa não é a guerra, mas o diálogo profícuo, estimulante, entre duas pessoas com pensamentos e sentimentos afins, embora, às vezes com ações diferentes. E principalmente, coisa rara, um debate aberto entre um cidadão e um gestor público. A senhora, como eu, sabe como estes espaços de discussões desapareceram com a implantação do governo militar no Brasil. Foram 25 anos de proibição da palavra e lavagem cerebral do pensamento da população, através da educação e dos meios de comunicação de massa a serviço destes ideais.

Tergiversar, altercar, discutir questões públicas sociais importantes com a senhora, faz com que eu comece, finalmente, a me sentir livre dos laços que a ditadura lançou sobre nós.

Demora muito, Sra. Secretária, e muitas vezes, nós mesmos repetimos procedimentos que repudiaríamos, se não estivéssemos de alguma maneira contaminados pelo vírus e pelo ranço do autoritarismo. Estamos conversando, coisa rara hoje em dia. Desde o inicio da década de 80 (oitenta) que estamos tentando.
Foram necessários dois mandados do Presidente Lula pra isto apenas começar a acontecer. Demora muito.

Mas estou feliz que estejamos ocupando este espaço para trocarmos idéias. É como se fosse ao vivo, e melhor, porque é publico. É diferente do que entrar em um endereço eletrônico público para discutir medidas já tomadas ou a serem feitas.

Mesmo que, por algum motivo nossa correspondência se encerre por aqui, já teria valido a pena.

Dito isto, vamos ao nosso assunto que é de definir políticas públicas para atividades artísticas nos espaços abertos da cidade do Rio de Janeiro, que possam ir além do controle administrativo ou compra de produtos.

A Sra. Secretária nos acenou com a implantação de um Decreto, que ao mesmo tempo que regularizasse as apresentações em praças públicas, também as protegeriam de possíveis constrangimentos com a Guarda Municipal e seu conceito de Ordem.

Na ocasião não concordamos com isto, pois, achávamos necessário uma política muito mais ampla para as atividades em espaços públicos, numa cidade como o Rio de Janeiro do que simplesmente controle. Achávamos e continuamos achando que estas medidas mais entravam do que ampliam o aparecimento, crescimento, e andamento de atividades culturais nos espaços abertos, públicos.
Mas para que não parecesse que nós somos daqueles que sabem discordar de tudo e que não conseguem propor nada, nós resolvemos enviar a esta Secretaria, uma sugestão de proposta mínima de organização e estímulo que não confundisse estimulo e controle.
O movimento de Teatro de Rua representa uma antiga nova ordem, que vem de baixo para cima e o poder público deveria contemplá-la. Há uma evidente vontade de ocupação dos espaços públicos no Rio de Janeiro, e a questão deveria merecer um olhar mais aprofundado e interessado do poder público, e não apenas medidas “protetoras” ou organizadoras. O controle não é estimulo.

Por isso propusemos outro enfoque e outra maneira de resolver o problema, que consideramos como verdadeiramente estimulante, e que deixaria qualquer artista das ruas do Rio de Janeiro muito feliz. Por estar trabalhando sob proteção artística, Cultural e não apenas policial.
Todos nós cresceríamos, e acredito, outros grupos e outras pessoas, poderiam se interessar por uma atividade que tem em seu respaldo a proteção e o estimulo do poder publico mediante regras fáceis de serem implantadas, e atendimento cordial.

Nós inverteríamos a ótica do Decreto, estimulando primeiro o aparecimento do fato e depois sua organização.

Os acontecimentos/ eventos de rua são muito variados, e tem naturezas diferentes. Vão desde um único artista se apresentando sozinho na rua até a um grande show de algum pop-star na praia de Copacabana. É preciso fazer a distinção. A política de fomento ás atividades dos grupos de São Paulo provocou o aparecimento de inúmeros grupos de Teatro de Rua, que de outra forma não teriam como vir a tona nem mesmo no sentimento dos artistas. Organizar o que existe é acompanhar os acontecimentos. Organizar o que não existe é determinar os acontecimentos. Esta talvez seja a diferença entre um Estado Progressista e um Estado totalitário. O que deve um homem público fazer? O que deve um gestor público fazer? E o que devem os artistas fazer, que não queiram simplesmente se colocar no “mercado Cultural”? Política de “mercado” para a Cultura? Este pensamento neo-liberal parece que se modificou um pouco neste nossos últimos tempos. Temos de repensar alguns procedimentos. Há uma emergência de uma nova realidade Cultural, no país, que circunda a produção Cultural voltada para o mercado, mas não se confunde com ela. Virá daí o crescimento e desenvolvimento pleno da vida cultural brasileira.

As atividades Culturais em espaços públicos, abertos é uma dessas emergências.

Criar condições para seu desenvolvimento faz avançar o processo de desenvolvimento da nação brasileira. O país vai bem. A pátria vai bem. Mas a nação sofre. A nação brasileira sofre. E neste momento a Cultura ou as emergências culturais ancestrais e contemporâneas, terão importante função na sua construção e saneamento.

Em todo o mundo, no momento, as nações sofrem perda de suas identidades. A turbulência é evidente. Uma nova emergência cultural poderá nos ajudar a fazer esta travessia tão difícil do momento em que vivemos. Os artistas têm, talvez, esta função na sociedade. Fazer as passagens, abrir as janelas, criar horizontes, despertar esperanças.
Esta atividade não pode, porém, por sua natureza, estar sujeita às leis e regras do mercado ou um sentimento de ordem estéril e castrador.

Sua historia e seu passado Sra. Secretária me fazem pensar que temos nós dois, os dois, o mesmo anseio de justiça e liberdade, a mesma crença num possível mundo melhor. A arte nos faz acreditar nisso. Não sei se na política um sonho deste sobrevive. Governar com arte é coisa rara. A Sra. tem esta chance , por ser quem é, e por estar ocupando justamente a Secretaria de Cultura do Município, que tem sofrido muito nos últimos anos com gestões medíocres. A Sra. Sabe. O Rio de Janeiro não merece.

O que é política Cultural? Como a Cultura deve ser encarada? Só como “produto”, “indústria”, “mercado”? Que olhar temos para as manifestações culturais que não têm este caráter? Que desejo temos dentro de nós de proteger e estimular estas manifestações e acreditar nelas e vê-las crescer e se transformarem e amadurecerem? O que queremos mais? Que elas se realizem, se multipliquem e enriqueçam a cidade e a vida do Cidadão? Ou vamos preferir controlar tudo e manter a cidade limpa? Qual é o nosso sentimento pela cidade? O que queremos que proliferem por suas ruas, até as Olimpíadas? Artistas ou Polícia? Trancar os artistas nas salas e deixar as ruas para os violentos e a polícia? Desertificar as cidades?

A Sra. acha que estou indo longe demais?

É que me vejo tão longe do que imagino ser uma cidade feliz. E o Rio de Janeiro é de todas a mais feliz. Tenho medo que consigamos entristecê-la definitivamente. Por isso me assusto. Tenho medo que um sentimento fascista tome conta da cidade, diante de nossa incapacidade de resolvermos nossos problemas sociais, a não ser pela força.

A Cultura tem um papel, uma função.

Quando propus, Sra. Secretária, aquele tipo de “organização” e estimulo achava que iríamos discutir estas questões de um ponto de vista mais amplo.

A Sra. fez um Decreto e nós não gostamos. E resolvemos discutir e propor uma alternativa. Esperava que sua resposta fosse emitir alguma opinião sobre o que propusemos, e que era muito diferente do pensamento por detrás do Decreto. Infelizmente a Sra. falou de outras coisas, de muitas outras coisas, todas importantes, mas parece ter ignorado a nossa proposta, não julgando-a merecedora de nenhuma consideração, ou resposta..

Mas estou e sempre estarei aberto a ter com esta Secretaria o mais amplo, aberto, impessoal e isento diálogo. Não há nada mais democrático que o cidadão poder discutir com o gestor público medidas que vão interferir diretamente em sua qualidade de vida.

É para mim tão importante esta questão que acho que qualquer política pública deveria passar antes pelos olhares, que deveriam ser mais esclarecidos, da Saúde e da Cultura.

Atenciosamente
Amir Haddad

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