Homossexualidade, religião, psiquiatria: uma evolução. (1)

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A ânsia de sentirem-se normais.

Um artigo sobre a homossexualidade

Luciana Sica em artigo publicado no jornal La Repubblica. (2)

“Porque somos heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, na realidade ninguém pode dizê-lo e, quem presume fazê-lo, é com toda a probabilidade presa de um delírio de onipotência. Nos gostos eróticos há um pouco de tudo: histórias individuais, desejos, ternuras, tormentos, “afetos” que fogem às explicações generalizadas, àquela tentação de construir estruturas identitárias baseadas sobre um modo já não proponivel de explicar a diferença entre os sexos – o masculino e o feminino como equivalentes de ativo e passivo – sem ter em nenhuma conta a “variedade” sempre mais vistosa na declinação dos gêneros.

A criar inquietude são ainda os homossexuais – os eternos “desviantes” falsamente tolerados, primeiro oprimidos pela vergonha e pelo escândalo, hoje pela impossibilidade de ser normais. A “patologização” das suas orientações é apenas em parte uma história não edificante do passado, e por longo tempo o mundo psicanalítico não se subtraiu de alimentar ondas por vezes cruéis de homofobia.

Mas hoje, haverá ainda alguém que presuma saber como deva ser a sexualidade de uma pessoa normal?

Sobre este “ponto”, muito num odor de moralismo, interrogamos Vittorio Lingiardi, psiquiatra e analista de formação junguiana, professor de Psicopatologia na “Sapienza” de Roma. É ele a dizer: “A psicanálise contemporânea é caracterizada por um panorama teórico variegado e atravessado por perguntas sem resposta. Não sabemos, por exemplo, como as forças biológicas, as identificações, os fatores cognitivos, o uso que a criança faz da sexualidade para resolver os conflitos do desenvolvimento, as pressões culturais à conformidade e a necessidade de adaptação contribuam para a formação do sujeito e para a construção da sua sexualidade. Nem sabemos se jamais será possível responder a estas perguntas. Aquilo de que seria oportuno partir, sempre e de qualquer modo, é uma declinação plural das sexualidades: um pouco de cada vez, é a tendência que vai prevalecendo, embora com alguma carga de resistência”.

Também se pode dizer que no passado os analistas tenham sido mais realistas do que o rei. Freud, que por mais vezes se referiu à homossexualidade como a “um mistério” ou também como a “um problema”, e na celebre Carta a uma mãe americana escrevia: “a homossexualidade não é, por certo, uma vantagem, mas não é nada de vergonhoso, não é um vício, nem uma degradação, e não pode ser classificada como doença: nós a consideramos uma variante da função sexual causada por certo retardo do desenvolvimento sexual”. E certamente mais conformistas do que Jung, tão atento aos percursos simbólicos da sexualidade, que na conferência sobre o Problema amoroso do estudante pronunciou uma de suas célebres frases: “Não pergunteis jamais o que alguém faz, nem como o faz”.

– Lingiardi: “Quando falamos de “como são” e de “como amam” os homens e as mulheres, encontramo-nos inevitavelmente no território da cultura, do relato e da língua. A teoria psicanalítica excedeu-se, ao invés, em generalizar e universalizar, pressupondo que masculinidade e feminilidade fossem categorias, em vez de dimensões. Por muitos anos o discurso psicanalítico sobe a homossexualidade considerou sua etiologia, referível a uma parada ou a uma regressão à fase edípica ou pré-edípica, levantando a hipótese da existência de uma linha de desenvolvimento e atingimento de um cume de heterossexualidade que assegurava a maturidade e a saúde mental. É claro que a etiqueta da imaturidade, como aquela do narcisismo, para as orientações homossexuais foi sempre mais revelando uma folha de figo pseudocientífica usada para cobrir o preconceito”.

Pesquisa psicanalítica

De resto, quanto à psicanálise – a pesquisa psicanalítica – pode ela não ser influenciada por valores culturais dominantes, pelo espírito do tempo, e, enfim, pode ela realmente evitar os preconceitos? Não se subtrai a esta pergunta, que nos parece de bom senso e ele julga “insidiosa”, Sarantis Thanopulos, grego de origem, brilhante qüinquagenário da Sociedade psicanalítica italiana: “O trabalho do analista é construído em torno da necessidade de suspender seu juízo, para restituir a palavra à interioridade dos seus pacientes: as mudanças na sociedade e na cultura tendem a entrar na psicanálise sobretudo através dos seus “casos”.

E já que a interioridade, em cada um de nós, encontra sua dimensão mais privada nos desajustes com os tempos da vida, a psicanálise está dentro e fora do seu tempo, permanece sempre “intempestiva”. De resto, se até as idéias dos físicos e dos matemáticos estão em estreita relação com a cultura do seu tempo, como poderia a psicanálise estar imune às mudanças culturais, não ser influenciada”?

O que Thanopulos, no entanto, exclui é uma ausência suspeita de “problematização” quando se fala de sexualidade em geral, e de homossexualidade em particular. Aquele politicamente correto que tende a banalizar e, sobretudo dissimular as desconfianças, o sarcasmo, certas formas mais ou menos sutis de recusa. Diz ele: “Considero infundada a idéia de que o erotismo homossexual seja patológico, mas não me parece o caso de empenhar-se para fazer as contas entre os “inovadores” e os “conservadores”, porque na realidade cada posição é legítima e problematiza a outra. Acima de tudo, não esquecerei que certo aspecto “herético”, certo “desvio” da homossexualidade sempre teve uma função muito importante: a de desestabilizar o estatuto normativo da sexualidade. Por certo, não é possível fixar eternamente os homossexuais ao polo transgressor da sexualidade, mas é preciso estar atentos – na passagem para a “normalização” – a não perder de vista o sentido profundo das diferenças, a cancelar as tensões que existem. O nosso mundo interno é habitado por fantasias heterossexuais e homossexuais – por aquela bissexualidade psíquica de que falava Freud. Creio que deixar de promover esta dialética dentro de nós, também com os conflitos que comporta, seria uma simplificação e um empobrecimento da vida interior”. Muito interessante é a posição de Thanopulos sobre aquele que define o componente homossexual nas relações entre homem e mulher, “lá onde – lê-se em hipótese gay – a diferença dos sexos é ao mesmo tempo desejada e repudiada”. Quem explica “O estatuto da sexualidade é sempre antinômico, porque o encontro com um outro corpo consente, tanto em perder a si póprio como em reencontrar-se. Aqui uma corrente “homofílica” vem em socorro da heterossexualidade, porque atenua e ao mesmo tempo protege o encontro com o outro sexo. Quando, no entanto, na vida adulta permanece a ferida da adolescência, no encontro erótico entre homem e mulher um certo componente homossexual pode dominar a cena”.

Mais em geral, diz Thanopulos – o verdadeiro perigo hoje “é a sempre mais difusa presença de “auto-erotismo” destacado do resto da sexualidade, que golpeia em igual medida relações homossexuais e heterossexuais. Nesta deriva, o outro torna-se um instrumento de prazer: não é mais um sujeito, não é uma pessoa inteira e autônoma, na realidade não te envolve, não pode entrar na tua vida”.

O verdadeiro divisor de águas

O verdadeiro divisor de águas na sexualidade humana não seria, então, entre heterossexualidade e homossexualidade, mas antes entre um auto-erotismo de sinal narcisóide e a capacidade de reconhecimento profundo do outro: aquela que os analistas definem como “escolha objetal” e nós, mais simplesmente, diremos: amar verdadeiramente alguém, seja homem ou mulher.

Em todo o caso, os analistas de hoje parecem agora muito longe de considerar os homossexuais como “doentes”. Talvez um pouco perversos, compulsivos, imaturos, narcisóides, regressivos, talvez sim, ainda. E talvez não possa fazer sucesso a citação de um grande autor como Christopher Bollas, que já em 1992 escrevia: “toda tentativa de construir uma teoria geral da homossexualidade pode ser satisfeita somente ao preço de graves distorções das discretas e importantes diferenças entre homossexuais, ato que poderia constituir um “genocídio intelectual”.

Como que a dizer: se apostamos na qualidade e nas dinâmicas das relações, ainda se pode falar de homossexualidade no singular? Serão os homossexuais capazes de amar e aqueles que saltitam de um corpo ao outro, talvez mais desesperados do que “gay”: no fundo, nada há de tão diverso daquilo que acontece nos encontros raramente idílicos dos heterossexuais, em tantas histórias dos quais não se sabe se mais áridas ou mais desconjuntadas.

Fonte: IHU em 09/01/2007

(1) Primeiro de uma série
(2) L’ ansia di sentirsi normali
(3) A seguir publicações no https://saudepublicada.sul21.com.br/  sobre o mesmo tema:

RECONHECENDO O DISCRIMINADOR

Conduta Discriminatória: tentativa de conceituação motiva correspondência entre psiquiatras.

Políticos e partidos usam grupos discriminados para fins eleitorais?

A eleição, os eleitores, os políticos, os debates e as discriminações

(4) Direitos homossexuais ganham o mundo

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