Resolução ANS: Muito barulho por muito pouco
Há tempos o Brasil ostenta um título que causa perplexidade além mar. Somos o país com a maior taxa de cesarianas do mundo. Tal fato poderia ser somente um reflexo da escolha de mulheres em um contexto em que ganham espaço éticas e estéticas voltadas para a tecnologia. Mas é muito mais complexo do que isso.
Disseram certa vez às mulheres, que sozinhas não poderiam parir. Colocaram-nas dentro de hospitais, sozinhas. Com as pernas amarradas e elevadas. Soro sintético gotejando em suas veias, provocando dores ainda maiores do que as fisiológicas já o são. A posição não favorece o nascimento do bebê, o tempo de espera para o nascimento é curto, já que a pressa é grande, e nos ensinaram que time is money… Cortaram-lhe então a vagina para a saída do bebê, um corte que lhe deixa marcas profundas, mas que já não calam.
Os médicos, ou melhor, as enfermeiras, passavam horas ao lado das mulheres. Os doutores chegavam para “fazer” o parto. E os “resultados” muitas vezes eram ruins, e ainda são. Porque esse jeito brutal de atender ao parto, diferentemente de lugares onde mulheres e bebês tem melhor chance de saírem saudáveis e felizes desse evento, realmente leva muitos recém-nascidos à UTI. Esse modelo de atenção, aliado à usual negligência com relação aos alertas das mulheres quando algo vai mal, fez com que muitos médicos (e mulheres) começassem a achar que o parto era um evento em si perigoso. Sim, acredito que para além da ganância de alguns, há uma legítima preocupação dos médicos com a saúde de mulheres e bebês.
Em um sistema suplementar completamente desregulado, começou-se a marcar cesarianas eletivas (aquelas fora do trabalho de parto). As mulheres assim o querem, diziam os médicos. Às vezes um pouquinho antes do tempo, o que levava (e ainda leva) muitos bebês a passarem suas primeiras horas de vida dentro de UTIs. Mas esse fato nunca foi motivo de denúncia por parte de nenhum órgão de classe. Nenhum médico levantou essa questão, afinal de contas, maternidades privadas lucram a cada recém-nascido que precisa ocupar um desses leitos (enquanto mulheres às margens do consumo de saúde não conseguem vagas para seus bebês quando precisam, mas vá lá…laissez-faire).
Algumas mulheres terão complicações em decorrência da cesariana: de infecções de ferida operatória a acidentes na cirurgia causando hemorragias (sem falar das complicações a longo prazo). Mesmo assim, certa vez escutei de um professor que ainda ensina outros obstetras: você nunca vai se arrepender de realizar uma cesariana, mas pode arrepender-se pelo resto da vida por ter tentado um parto normal. Ele referia-se a um processo judicial que lhe tirava o sono, um bebê falecido em decorrência de uma distócia de ombro, situação em que o bebê fica preso e que requer um jeitinho ou “manobra” para liberá-lo.
O que ninguém fala, mas que talvez fosse interessante divulgar para a população é: que processos médicos legais decorrentes de parto normal são esses? Essa ideia de partos normais acabando em litígio povoam o imaginário dos médicos desde sua formação. Mas de que jeito esses partos foram atendidos? Não serão resultado de iatrogênese e da dificuldade de lidar com possíveis complicações? Nosso conselho de classe, com sua missão de defesa da sociedade, faria um grande favor ao debate hoje instaurado no país, se divulgasse um documento contando-nos essas histórias, sem os nomes de médicos ou hospitais é claro. Os Comitês de Vigilância de Óbito Materno e Neonatal também poderiam nos dar algumas pistas…Qualquer país sério, que se visse diante do impasse que vivemos no que se refere a assistência ao parto, teria interesse em abrir essa caixa de pandora. Afinal, pessoas que tem se dedicado a estudar e praticar obstetrícia são chamadas de aventureiras, enquanto desarrazoados andam por aí em gravatas…
Precisamos admitir, que os médicos de hoje estão muito melhor treinados para lidar com uma hemorragia numa mesa cirúrgica, do que com a dificuldade de liberação do ombro de um bebê em seu nascimento. Mas, quanto mais teme-se uma distócia de ombro, menos ela é treinada e quanto menos treinada, mais temida fica… Acredita-se que fazer obstetrícia seja como andar de bicicleta e é também verdade que em seus primórdios já era vista como uma especialidade menor. Será por isso que nos plantões só vejo colegas estudarem patologia cervical, medicina fetal e reprodução humana? Com tanto a aprender como podem os colegas mostrarem-se tão apáticos?
Os aventureiros tentam chamar atenção para algo diferente nos encontros em que há espera e respeito, mas os engravatados estão surdos. Estão aturdidos com a queixa de mulheres que se dizem violentadas, com as narrativas de mulheres que desenham linhas-de-fuga radicais na direção de partos domiciliares. Bradam que são eles, os cotidianamente violentados, por atuarem em hospitais que não oferecem condições de trabalho (questão que exigiria engajamento em sindicato mais do que transferir a violência para quem depende daquele atendimento).
Mas é claro que os médicos não assumem medo, inadequação, dificuldades e desinteresse. Melhor inventar mitos que reforcem a defectividade tão habilmente construída pela “especialidade das mulheres”… temos bacias estreitas.
Felizmente, mulheres aqui e no resto do mundo, estão mais atentas e fortes. Na trilha de um movimento de décadas, que requisita à mulher direito sobre o próprio corpo, no Brasil já há algum tempo mulheres e profissionais que as apoiam, tem ousado falar, exigir e questionar.
A resolução da ANS, que visa induzir uma redução na alarmante taxa de cesarianas no Brasil, é resultado da pressão do movimento de mulheres, mais especificamente da entidade Parto do Princípio, sobre o Ministério Público Federal. E o que ela recomenda pode ser considerado um passo importante porém ainda bastante tímido. Dentre as exigências da resolução estão:
1- que as mulheres sejam informadas sobre os riscos e benefícios de uma cesariana. Porém já começamos a perceber o quão inútil pode ser deixar isso a cargo do próprio médico. Os termos de consentimento (supostamente) livres e (rasamente) esclarecidos que passaram a ser divulgados, perpetuam a ideia de “autonomia do médico” para fazer o que quiser sobre o corpo da mulher com o seu consentimento. Um TCLE que se preze deve esclarecer os riscos de procedimentos como a cesariana de forma clara mas também informar sobre os riscos do uso indiscriminado de procedimentos danosos durante o parto.
2- transparência de informações, com a divulgação de taxas de cesariana por profissional e por maternidade. Na verdade deveríamos estar exigindo transparência de todos os indicadores de assistência ao parto, porque diante de um parto violento e intervencionista é normal que mulheres optem uma cesariana “indolor”.
3- que as mulheres tenham acesso a um cartão de gestantes. Ele possibilita que as mulheres tenham consigo informações importantes sobre si e sobre sua gestação, o que oferece rápido atendimento no caso de uma emergência obstétrica. Também dá liberdade para que a mulher mude de médico. Infelizmente é comum a prática de médicos reterem os exames das pacientes em seus prontuários. Muitas mulheres sentem-se reféns de seus obstetras por isso. Esse ponto evidencia bastante as contradições decorrentes de uma prática em que é preciso garantir uma “clientela” . O cartão da gestante é está amplamente acessível a todas as mulheres no SUS.
4- exigência de registro da evolução do trabalho de parto em um partograma. Esse instrumento permite identificar (pela passagem do tempo) a necessidade de intervenções, ele precisa ser explicado e melhor conhecido pelas mulheres que desejam um parto normal, porque pode ser facilmente forjado.
Mesmo que só tangencie o problema das elevadas taxas de cesariana no país, a resolução da ANS tem gerado intenso debate e críticas de médicos e suas entidades. Isso porque nem profissionais, nem setor suplementar estão muito habituados a qualquer tipo de regulamentação de suas práticas. No entanto, interferir no núcleo duro do problema exigiria, como já bem demonstrado por experiências internacionais, inserir enfermeiras obstétricas e obstetrizes no atendimento de partos de risco habitual e implementar auditorias de plantões e prontuários. Portanto, vai ser preciso mais do que leve constrangimento para mudar uma prática pouco preocupada com questões como cuidado e segurança.
Diante da situação desfavorável no setor suplementar, muitas mulheres tem buscado assistência ao parto em maternidades, centros de parto normal, casas de parto do SUS. É preciso que mais mulheres de camadas médias usem e demandem mudanças ainda necessárias para a assistência ao parto como experiência, humanizado, respeitoso e seguro. Apesar dos lentos avanços, e de todas as tentativas de desmonte da efetivação da saúde como direito, temos no SUS a garantia de participar e de tentar construir coletivamente. A discussão da ANS é importante, mas seus resultados são direitos excludentes, e há contradições que não podem ser resolvidas quando saúde é entendida como mercadoria. Já, reconhecer saúde como direito, requer participar de uma luta maior, por uma assistência ao parto digna para todas as mulheres.