RAÍZES RIZOMÁTICAS DA PNH. UMA RETOMADA DE SUA HISTÓRIA.

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Em um dos ótimos comentários e proposições de Shirley Monteiro ao post https://redehumanizasus.net/91684-politica-nacional-de-humanizacao-compoe-novo-arranjo-de-apoio-do-ministerio-da-saude-as-regioes-de-saude, intitulado Mudanças podem ser boas, maaass…, ela sugere a retomada dos preciosos textos iniciais de Eduardo Passos e Regina Benevides, para que se mergulhe nas raízes rizomáticas da PNH, antes de se tentar institucionaliza-la.

Dada a riqueza das discussões na RHS sobre a PNH, com diversos apoiadores em humanização dos territórios expressando o desejo de saber mais a respeito dela, penso que mergulhar no tempo pode ser um ótimo exercício para retomada de conversas.

Assim, fui estimulado a fazer um post  retomando a conferência de abertura de Eduardo Passos, quando do 2º Seminário Nacional da Política Nacional de Humanização, ocorrido em agosto de 2009, em Brasília, fez uma síntese que não só retomava a história da PNH, mas principalmente, esclarecia seu ‘espírito’ norteador que, como veremos, tornava a PNH um modo de fazer.

Faça uma tomada da fala de Passos sobre a PNH porque penso que ela nos provoca para o entendimento do sentido da PNH, do ‘espírito’ que a moveu. A íntegra da conferência pode ser encontrada aqui na RHS: https://redehumanizasus.net/88330-conferencia-do-edu-passos-e-mesa-de-abertura-do-seminario-5-de-agosto-de-2009.

Comecemos, portanto, dizendo que a PNH se constituiu como um modo de fazer, possuindo princípios metodológicos, e um modo de dizer, possuindo sua discursividade, seu cabedal teórico/prático. Modo de fazer e modo de dizer, no entanto, que foi pensado para afirmar e reacender o movimento instituinte do SUS, naquilo que Eduardo Passos chama “o reencantamento do movimento SUSista”.

A PNH se instituiu, então, visando o SUS como política pública, aquela mesmo que iniciou todo o movimento da reforma sanitária que, em meio a disputas de sentidos, de projetos e programas políticos, efetivou o SUS na forma da lei e fez a Constituição Brasileira de 1988 afirmar: Saúde é um direito de todos e um dever do Estado.

O SUS, portanto, entendido como política de Estado, instituída através de princípios, normativas, portarias, mas também política de Governo, que de 04 em 04 anos atualiza as prerrogativas da lei, como representante democrático legitimado pelo voto direto. Porém, tendo sido instituído por uma política pública, um movimento que da década de 70 para frente enfrentou o autoritarismo e o conservadorismo, lutando pela democracia institucional nas instituições de saúde no Brasil.

Movimento que saiu vitorioso em sua luta, conseguindo instituir o desejo social do momento, mas que não se finaliza e nem se concretiza nesta instituição legal. O SUS, afirma Passos, é uma obra aberta, deve ser atualizado, reformulado, transformado e constantemente reinstituído pelo mesmo movimento que o fez se concretizar. Acima de tudo, o SUS só pode ser e só tem potência como política pública, aquela que fazemos no cotidiano, construída coletivamente no acordo social. Se o deixamos a mercê da máquina de Estado, a mercê das instabilidades do governo, perdemos sua potência instituinte, o deixamos cristalizar-se como letra fria e morta da Lei.

Como conquista social, a missão do SUS não pode se separar do plano da experiência concreta, aquela que é realizada por sujeitos concretos no cotidiano. Assim, gestores, trabalhadores e usuários do SUS são corresponsáveis por sua efetuação e transformação no sentido de garantir os seus princípios: Universalidade do acesso, Equidade do atendimento e Integralidade da saúde.

Como provocou Passos, em 2009, dizer que a Saúde é um direito de todos convoca a uma problematização deste ‘todos’ na diretriz dos três princípios.

A Universalidade do acesso afirma que todos devem poder acessar o Sistema, mas este todos não pode excluir cada um, um qualquer. Certamente, tem de haver normativas, protocolos, portarias, prescrições, o que é feito tendo por base padrões gerais, regras comuns. Porém, este geral e comum não pode excluir aqueles que não se enquadram nas regras gerais, aqueles que estão à margem da sociedade, as minorias.

A Equidade reforça que cada um em sua singularidade e diferença seja levado em conta e tenha garantido os seus direitos. Equidade não quer então dizer homogeneidade, identidade, igualdade de tratamento a despeito da singularidade de vida daquele que busca o cuidado. Equidade significa que todos têm direito à assistência, mas dentro de suas necessidades e considerando-se o seu modo de existência. As normativas, os padrões, não podem, então, reduzir um qualquer às suas prerrogativas, à sua generalidade, mas deverão ser flexíveis o bastante para incluir o diferente em sua diferença, com suas necessidades específicas.

A equidade exige então a integralidade da saúde. Saúde entendida em toda a sua complexidade, na sua totalidade, na totalidade de qualquer vida humana, que inclui direito de ir e vir, necessidade de transportes efetivos, moradia, trabalho, cultura, lazer, educação, etc.

Os princípios do SUS, no entendimento de Passos, apresentam-se como desafios éticos, políticos e estéticos de transformação da sociedade, de efetivação da saúde como bem comum, como bem público, o que vem sendo constantemente esquecido pela sociedade brasileira e pela onda neoliberal que a assola, ditando outro papel para o Estado, sucateando financiamento e tentando fazer da Saúde uma empresa lucrativa. Ora Saúde não é negócio, saúde não é mercadoria, saúde não é propriedade privada, é bem público, bem comum.

Foi para fazer frente a este desafio que em 2003, segundo Passos, se concretizou o que se chamou de HumanizaSUS, uma Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção em Saúde (PNH) que se propunha a missão de, enfrentando os desafios éticos, políticos, estéticos lançados pelos princípios SUSistas, reencantar seu movimento instituinte e lutar pela efetivação de um SUS que dá certo.

A PNH partia então da inseparabilidade entre o trabalho de gestão e de atenção em saúde. Criação de grupalidade, de corresponsabilidade e de protagonismo dos sujeitos que estão implicados no processo de produção da saúde seriam então fundamentais. O SUS não se sustenta como uma abstração e só se efetiva nas práticas concretas, nos modos de fazer atenção e modos de fazer gestão nas práticas de saúde.

O SUS precisa, então, se implantar como um plano comum, uma comunidade. Como entendemos, uma comunidade por vir que, uma vez constituída e constituinte, seria a dissolvência da PNH enquanto proposta, que é a de tornar a humanização uma política efetivamente pública, de todos.

Para isto, tornava-se necessária a construção de um plano de comunicação que fizesse frente ao modelo hegemônico nas instituições de saúde na realidade brasileira. Era urgente por os diferentes protagonistas para conversar – o método da roda.

Procurava-se equivocar os processos de produção de subjetividade hegemônicos, pois os princípios do SUS só se encarnam a partir das experiências concretas, de sujeitos concretos que transformam sua existência em sintonia com as práticas nos serviços. Desta forma, para a PNH, Clínica e Política não se separam. A PNH valoriza os processos de transformação subjetiva que apontem na direção das mudanças nas práticas de saúde, mudanças na forma de gestão e atenção, também inseparáveis.

Partia-se de práticas concretas, contextualizadas, levando-as a frente, transformando-as coletivamente. Entendendo que promover um plano comum não é mediar conflitos, apaziguá-los, nivelar a todos num padrão identitário único. Ao contrário, é valorizar as diferenças, incluir o tensionamento como oportunidade de repensar o que está instituído e apostar que, apesar das constantes disputas de sentido, uma diretriz comum pode ser traçada e seguida, apesar das diferenças que comporta e que deve comportar, como garantia de não instituição de uma vez por todas, de não cristalização das práticas em modelos, regras, protocolos, prescrições que aniquilam e obstruem os processos de mudança.

Mas em que direção se propunha mudanças, valeria qualquer coisa? Não, não valeria. Não se queria qualquer cuidado, qualquer vida, qualquer SUS. Seriam os princípios do SUS que indicariam o que se devia fazer, como princípios, diretrizes,  dispositivos e criação de dispositivos que caminhassem na direção do que já estava proposto: universalidade, equidade e integralidade.

Princípios estes pactuados e instituídos socialmente e quase que esquecidos em sua radicalidade, em seu movimento revolucionário, contrário a todo autoritarismo e conservadorismo que alijem o homem de sua condição de humano sempre em construção, na sua ação de humanizar-se, transformando o cuidado consigo e com os outros, na sua humanização, processo contínuo, obra aberta, como também o é o SUS.

Os três princípios norteadores da PNH são a transversalidade, a indissociabilidade entre atenção e gestão, entre clínica e política e a cogestão.

A transversalidade, como princípio metodológico, convoca a alterar os padrões comunicacionais hegemônicos nas instituições. Que padrão é este? Os diferentes são colocados numa organização vertical, como diz Passos, “fala quem pode e obedece quem tem juízo”. Os iguais são colocados num plano horizontal, “igual só fala com igual”, gerando o que conhecemos como corporativismos.

A aposta da transversalidade é o embaralhamento deste plano vertical, separando os diferentes em hierarquias, e deste plano horizontal, separando os iguais por corporações, traçando uma diagonal de lateralização dos diferentes. Os diferentes são colocados lado a lado – é o que entendemos como o método da roda, proposto por Gastão Wagner.

A meta é fazer circular a palavra, pois com isto fazemos os sentidos circularem, se equivocarem, provocarem problematizações que exigem novas atitudes frente ao enfrentamento daquilo que é tido como normatizado, normal, instituído de uma vez por todas, como se só houvesse um único modo de fazer possível. Com isto, claro, se faz circular o poder, deslocando-o numa dinâmica de circulação que é o que se denomina na PNH Cogestão.

Cogerir é, então, construir a partir de um plano comum, nunca dado, nunca equilibrado, nunca definitivo, mas em que todos os possíveis se abrem a uma experimentação corresponsável em que gestores, trabalhadores e usuários tenham abertura suficiente e ouvidos acolhedores, ouvidos não surdos por um discurso por demais cômodo, que os deixam em sua zona de conforto, se desresponsabilizando pelas situações, simplesmente porque estão fazendo o que deve ser feito, conforme o que está prescrito.

Não se trata de acabar com o poder, de enfrenta-lo por enfrenta-lo ou de desqualificar as normas, protocolos, prescrições como negativas e destrutivas. Não se trata nem mesmo de exterminar as hierarquias instituídas, pois o gestor deve continuar gestor, o trabalhador trabalhador e o usuário usuário, todos têm singularidades e especificidades.

Como também ouvir aqueles que recebem, embutido no modelo hegemônico de cuidar, um ensurdecimento, uma castração do saber existencial e de suas formas de vida a que não pediram e frente ao qual se sentem impotentes, resignados, castrados, relegados, desqualificados, enfim, meros pacientes.

Trata-se, enfim, de humanizar as relações institucionais, naquele sentido da democratização das relações nas organizações que se dão pautadas em modelos verticais e horizontais que não permitem a circulação da palavra e não valorizam aqueles que executam e recebem o cuidado, como se também não fossem gestores do cuidado, como se não fossem capazes de planejar, monitorar e avaliar as suas ações, como se não fossem, enfim, seres vivos normativos, que não só cumprem, mas são também capazes de refletir, propor e mudar as normas na direção de um novo modelo de atenção e gestão do cuidado.

Assim, a transversalidade exige o segundo princípio metodológico, o da inseparabilidade entre gestão e atenção, entre clínica e política e, eu acrescentaria, entre formas de trabalhar e formas de subjetivar, pois vida e trabalho não se separam. O que o trabalhador sofre no trabalho, sofre em seu corpo, em sua pele, em sua saúde, principalmente quando é impelido a fazer o que deve ser feito, por imposição, sentindo que não faz aquilo que deve ser feito, por ética e compromisso social. Coisa que denomino patologia do trabalho, violência institucional, castração político existencial, como queiram, infelizmente abundante nos modelos verticais que ainda grassam as instituições de saúde brasileiras.

Mas isto não se consegue sem a transformação dos processos de trabalho e das formas de participação reais neste processo de transformação. Como disse Passos, “para haver gestão tem que haver gestação”, um processo que exige tempo, mudanças subjetivas e corporais, pois há que se criar um novo corpo, que se criar uma nova atitude, com todo o cuidado que isto requer. É preciso então uma certa experimentação corresponsável, prenhe de dobras, que valorize a participação de gestores, trabalhadores e usuários.

Não existe SUS como política pública sem participação, participação valorizada e incentivada como instrumento para a mudança daquilo sentido como intolerável. No monocromismo de um único mundo possível, abrir a aquarela de possíveis construídos conjuntamente, em Cogestão, corresponsabilização e protagonismo, que chamaríamos então, autonomia responsável, ou melhor, corresponsável.

E para haver corresponsabilidade e comprometimento, precisamos de um plano que não tenha centro de decisão, de planejamento e de empobrecimento daqueles que se transformam, então, em meros executores. Por isto se valoriza o funcionamento das redes, redes internas e externas, redes aquecidas e solidárias da qual o SUS necessita para se efetivar.

Como disse Passos, redes não têm centro, redes têm nós. Nós somos as redes. Formamos todos pontos vibráteis, porque vivos, porque singulares. Sozinhos não se faz nada, mas em rede, cada ponto, cada anônimo singular é um gestor que faz de uma rede não espaços vazios circundados por nós, mas espaços plenos de diferenças e de potência que, ligando-se a outros nós, faz um só Nós que aqui queremos denominar o comum. Um ninguém que faz toda a diferença!