A UTI, A MORTE E A BARBÁRIE
Era uma UTI neonatal de ponta, o resultado da mobilização política não só do diretor do hospital, mas também de toda uma comunidade.
Já foi dito que os nossos hospitais assumiram o lugar das catedrais no papel de fazer milagres. Concordo com a metáfora. No passado uma catedral era o edifício mais alto de uma cidade. Dela podíamos ver as muralhas ou um barco que se aproximava do porto. Era nela também que existia vida simbólica mais intensa. Ali celebrávamos casamentos, nascimentos, festas e também nos despedíamos dos nossos mortos. Além disso, antes da segunda metade do sec. XVIII, caso fôssemos ricos ou nobres, ali os sepultávamos.
Devagar o hospital foi assumindo o espaço do nascimento e da morte. Em tese, a medicina não precisa mais de Deus para explicar seus processos de intervenção e nem seus resultados. Agora um imbricado de concepções, com base na ciência, ajuda a operar os “milagres”.
E é isso que ocorre numa UTI neonatal. Num passado nem tão distante, era impossível um nascituro com 5 meses de gestação ter alguma chance de sobrevivência. Hoje as possibilidades se desdobram em novos olhares que intuem para breve um arcabouço digno da ficção científica. Quem sabe teremos bisnetos gestados em úteros artificiais?
Assim, trabalhar em meio a um aparato de alta tecnologia pode funcionar como símbolo de status, algo similar como exibir seu carro aos amigos com novos recursos de tecnologia.
Foi exatamente essa atmosfera que senti certa vez ao conhecer uma nova UTI neonatal. Gestores e trabalhadores mostravam-me aqueles bebês tão minúsculos. Impossível não pensar na vulnerabilidade humano no eu sentido mais extremo. Também era impossível não pensar na metáfora do “milagre” que salvava aquelas crianças. A vontade humana foi criando gradualmente uma imensa intersecção com ações que antes estávamos acostumados a colocar na ordem do divino.
Quase no final a visita insisto para ver tudo. Um porta fechada era o espaço para se guardar material de limpeza. Mas na prateleira quase rente ao chão um pequeno “pacote” de pano chamou minha atenção. Perguntei o que era aquilo.
Um olhar constrangido cruza com o meu. Ouço um balbuciar ininteligível. Digo que não entendi o que foi falado. O trabalhador repete e agora entendo…entendo sem compreender. O tal “pacote” era na verdade o invólucro de um pequeno cadáver, um bebê onde o milagre do conhecimento não conseguiu ser operado.
E lá estava ele, junto ao amoníaco, sabão e vassouras, um rejeito da febril produção hospitalar depositado a pelo menos 5 horas numa prateleira rente ao chão. Era um “não ser” que não deveria estar ali. Mas ainda assim, aquele corpo pequeno frio e rígido portava o afeto e os projetos de vida de tantas pessoas que não sabiam que agora a esperança estava depositada na prateleira rente ao chão.
Para os processos de trabalho hospitalares a morte é vácuo difícil e ser preenchido. Nos segundos que seguem a declaração oficial de óbito, zelosos trabalhadores devem rapidamente transformar o cadáver numa “embalagem” e o percurso do corpo deve acontecer por corredores “secretos”, longe das vista das pessoas pois a morte choca ao mesmo tempo que expressa que o poder miraculoso desse templo de branco imaculado também tem seus limites.
No fim do caminho, uma sala suja com infiltrações na parede e uma pedra de granito mal polido esperam o cadáver na sua última parada no hospital. De lá sairá boa parte das vezes por uma porta ao lado onde se elimina o lixo hospitalar.
No caso do nosso bebê existia espaço para o improviso. Aquele pequeno cadáver era uma marca indelével de uma certa busca de fugir da morte, não importa que existam pessoas que sentem a dor daquela perda. Expressões como “dignidade” ou “empatia” foram colocadas a margem dos processos de trabalho diante da simples questão “O que fazer quando os bebês morrem”? A barbárie muitas vezes coabita na mais elaborada forma de conhecimento oupelo menos dele se utiliza para justificar sua existência.
Em um filme de ficção científica do início dos anos 70, chamado “No Mundo 2020”, o personagem central descobre desconsolado que o governo havia resolvido em parte a carência de alimento num mundo em colapso ambiental fazendo a reciclagem dos cadáveres e transformando-os numa ração rica em proteínas. Estamos hoje em 2015. Quem sabe das surpresas que nos aguardam nos próximos anos?
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Estive em contato com uma UTI de adultos recentemente e soube que nos EUA gasta-se 40% de todos os recursos da saúde para a manutenção da vida. A grande questão é que a coisa se dá sob condições bastante questionáveis do ponto de vista de que tipo de vida está em jogo nesta iniciativa.
Parece que o que importa é simplesmente manter a vida nua, biológica. A vida qualificada, com todas as instâncias éticas que a compõem, fica para a discussão dos filósofos…Triste.