As quatro estações

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Autora: Fátima Couto
Co-autores: Leidiane Queiróz e Vilca Araújo

 

Resumo

As quatro estações retratam através de uma análise qualitativa dos fatos, as etapas do processo de desinstitucionalização de um paciente de longa permanência do Hospital Dr. João Machado, Natal, RN. O relato inicia com a chegada do mesmo ao hospital e é finalizada após o seu retorno à cidade de origem. O título foi inspirado na obra do compositor do Barroco Italiano, Antônio Vivaldi (1678-1741). O inverno será caracterizado com a chegada do protagonista ao Hospital, seguido pelo verão onde discorremos sobre a reconstrução de sua história de vida. O outono ou estação da dúvida, como tão bem definiu o usuário, falará das dificuldades de viabilizar sua saída do Hospital. Esta estação retrata a precariedade do vínculo familiar e as limitações institucionais. A primavera é o retorno ao convívio social e é também o final de um círculo de quatro anos de moradia hospitalar. No entanto, a estação das dúvidas é que perpassa todos os períodos e com certeza o acompanhará por toda a vida.

 

As quatro estações

Assim como em um dia frio e nublado de inverno chega Antônio Brandão ao Hospital Dr. João Machado em Natal, Rio Grande do Norte-RN. No dia 21 de novembro de 2009 sua mente passava por um temporal, tal qual seriam os seus primeiros dias por aqui…

  Chegou conduzido pelo Serviço de Atendimento Médico de Urgência, procedente do Hospital dos Pescadores, onde foi atendido por apresentar ferimento no couro cabeludo e fratura no braço direito. Sem referência familiar conhecida, sem documentos pessoais, sem teto e em estado de confusão mental, o hospital psiquiátrico continuava sendo o único “abrigo” para os “desprovidos da razão”.

Falava de sua peregrinação da cidade de Aracati – Ceará até Macau-RN, onde foi submetido a tratamento em um hospital público e diz ter sido vítima de maus tratos. Como relâmpagos, luzes acendiam velozmente em sua mente e traziam fragmentos de sua sofrida história de vida. Falava que é de um pequeno lugarejo no Estado do Maranhão – MA, denominado Repartição, Distrito de Brejo e mencionava o telefone de pessoas amigas na referida cidade.

Os ruídos fortes, massificados e repetitivos da rotina hospitalar, lembravam repentinamente os estrondos causados por um trovão. A tempestade se instalava no corpo e na mente de alguém que não podia mais sentir o frescor da liberdade em seu rosto. Em meio a essa tempestade a luz surge quando através da valorização da palavra do protagonista dessa história conseguimos contato com uma funcionária do Hospital Psiquiátrico La Ravardiere, em São Luiz – MA, onde ele mencionava já ter sido internado e desta forma resgatamos informações importantes sobre sua origem.

No processo de reconstrução de sua história de vida começamos a traçar o Projeto Terapêutico Singular, sempre estimulando sua participação. Os primeiros contatos telefônicos com os familiares tornaram-se possíveis, através da parceria com Dona Sebastiana e Dona Conceição que se prontificaram a marcar um horário para falarmos com Carmem, irmã de Brandão. Pudemos constatar desde o primeiro instante, a fragilidade no vínculo familiar e a partir de então o estímulo à corresponsabilidade da família no tratamento, passou a ser um dos instrumentos terapêuticos por nós utilizados. A distância física e a precariedade da rede de assistência em saúde mental no município eram os principais nós críticos para nossa atuação.

O passo seguinte foi a oficialização da segunda via de seu Registro de Nascimento junto ao Cartório de Brejo – MA, onde  ele informou ter sido registrado. De posse deste documento iniciamos a fase de requerimento dos demais documentos pessoais e em 28 de agosto de 2010 foi requerido o seu Benefício de Prestação Continuada, da Lei Orgânica de Assistência Social, tendo sido concedido em 23 de setembro de 2010. Ressaltamos que nem cogitamos o uso do instrumento da curatela, por acreditarmos que ela vai de encontro à proposta de resgate de autonomia e reinserção social da Reforma psiquiátrica Brasileira, respaldada na Lei 10216, de 06 de abril de 2001.

Na sequência conseguimos abrir Caderneta de Poupança na Caixa Econômica Federal e a partir de então ele se tornou correntista de fato e de direito de uma instituição financeira, resgatando parte de seus direitos civis antes interditados.

Quando o sol parecia brilhar, eis que surge a estação da dúvida. Como tão bem definiu Brandão, esta nova estação foi marcada pelas dificuldades de articulação com os familiares e pela extinção de um importante Programa da Secretaria Estadual de Saúde Pública do RN, denominado Tratamento Fora do Domicilio, que vinha se constituindo um forte aliado da proposta de desinstitucionalização e indispensável na efetivação da Alta Assistida¹, proposta implantada neste serviço em meados de 2005 quando o Projeto Terapêutico Institucional tinha o objetivo de contribuir com o alavancar da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Restabelecido física e psiquicamente ele continuava institucionalizado e sem perspectiva de futuro. Parecia estar acostumado as limitações dessa etapa de sua vida e nos fazia lembrar do pensamento de Marina Colassanti.

 “A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista que não as janelas ao redor e porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora e porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão”.

O furacão fazia mais vítimas. De um lado a interdição do desejo e do outro a banalização da vida humana nos tornava prisioneiros da lógica manicomial, tão criticada e tão reproduzida no cotidiano dos serviços.

A esperança floresce quando conversamos com Brandão sobre a possibilidade dele pagar pela sua liberdade, já que tinha conseguido amealhar em quatro anos de institucionalização o suficiente para pagar passagens e diárias para ele e dois acompanhantes. Ele achou viável e explicamos que precisaríamos da aprovação do Ministério Público do RN para efetivação dessa proposta. Informamos, através de ofício, que nosso trabalho tem como objetivo contribuir com o resgate da cidadania da pessoa com doença mental, argumentando que esta é constituída de Direitos e Deveres e solicitando autorização para ele arcar com os custos de seu retorno ao convívio social e familiar. 

A solicitação foi atendida, graças à sensibilidade da Dra. Adriana Gurgel, responsável pela Promotoria de Registro Público e Interdição na época, com a qual efetuamos uma administração compartilhada dos recursos financeiros das pessoas em internação continua no HJM.

      Conforme o acordado com o Ministério Público e principalmente respeitando seu desejo de voltar para casa, compramos juntos as passagens aéreas para São Luís em 07 de março de 2014. Ele decidiu que arcaria com as despesas de apenas um acompanhante para diminuir os custos desse “investimento”.

Para selarmos o vinculo estabelecido entre nós fizemos uma festa de despedida em um passeio de barco na Lagoa do Bonfim (Ver fotos).

Em 03 de abril de 2014 Brandão retornou a sua cidade de origem, acompanhado pelo técnico de enfermagem e acompanhante terapêutico Francisco Pereira que repassou ao usuário e sua família o cartão de sua conta de caderneta de poupança e o saldo do dinheiro reservado para as despesas da viagem. Para nossa frustração perdemos o contato com ele, apesar das inúmeras tentativas de ligarmos para sua irmã e para os serviços de saúde da região.

No entanto, é importante ressaltar que:

 “Sempre será uma aposta, em boa medida experimental, construir novos modos tecnológicos e sociais que permitam o nascer, em terreno não fértil da subjetividade aprisionada da loucura excluída e interditada, de novas possibilidades desejantes protegidas em redes sociais inclusivas (MERHY, 2004)”.

Brandão, só nos resta agradecer pelo muito que você nos ensinou e desejar que os novos ventos, dos novos tempos lhe tragam a dignidade perdida e nos impulsione a lutar cada vez mais pela liberdade da pessoa humana. Sabemos que o curso da vida é uma eterna incerteza, e é a estação da dúvida que perpassa toda nossa história.

 

¹ Alta assistida: tem por objetivo apoiar a continuidade do tratamento através de articulação com a rede básica para evitar as internações frequentes (CAPS, PSF, Agentes comunitários de Saúde e Gestores Municipais), oferecer suporte aos familiares para que possam receber os seus pacientes de volta ao lar e facilitar o processo de reinserção social e o consequente resgate da cidadania, através de contato com os recursos disponíveis na comunidade (igrejas, centros comunitários, etc).