Participação Popular em Tempos de Golpe

9 votos

No dia 27 de abril ocorreu na Faculdade de Saúde Pública da USP um debate organizado pela Rede de Médicas e Médicas Populares com o tema “A Crise Democrática e o SUS: Os Cenários em São Paulo”¹Na mesa estavam Alexandre Padilha, secretário municipal de saúde de São Paulo, Marília Louvison, presidenta da Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) e eu, representando o Núcleo São Paulo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). 

Compartilho com vocês minha fala, que embora tenha sido nervosa para um principiante nesses grandes debates, foi construída a partir de um debate bem empolgante e esclarecedor entre nós, membros do Núcleo São Paulo do CEBES. Aliás, já fica o convite a todos os interessados em querer aprofundar os debates sobre saúde a partir de um olhar sócio-histórico em participar das reuniões do CEBES SP².

Fomos convidados à fazer uma fala sobre Participação Popular e aqui está um pouco desta fala:

                     

O que é participação popular?

Melhor, vamos refinar essa pergunta: o que é participação popular num país como o Brasil?

Um país que alguns vão definir como múltiplo, culturalmente plural, outros como um país de capitalismo tardio ainda extremamente desigual socioeconomicamente e outros em um país que se constituiu e não superou seu passado de coronelismo e escravismo.

Todas essas interpretações podem ser muito bem levadas a sério, e a votação da Câmara dos Deputados de 17 de abril expõe bem isso. Ou alguém tem dúvida? E que fique claro, mesmo para a surpresa de muita gente, aquilo que vimos e ouvimos não surgiu do nada, aquilo não caiu do céu das mãos do deus que eles tanto falavam. Aquilo também é o Brasil!

E aí que entra uma nova pergunta: como nós, classe trabalhadora –essas duas palavrinhas que muito de nós esquecemos – conseguimos sobreviver a isto?

A resposta é clara e ninguém aqui precisa ir aos livros de História para ver isso, basta perguntar para nossas avós, mães, tias, para nós mesmos: através da organização.

Mas embora a resposta seja clara, a organização em si não é simples levando em conta o significado da palavra e da ação.

Ah, mas você falando de organização, classe trabalhadora e tal, você tá falando dos partidos, né? Dos sindicatos, das centrais patronais, das grandes entidades estudantis? Não apenas! E aí que está o nó da questão.

O que muitas gestantes faziam numa época em que nem INAMPS existia? Cada uma paria sozinha em casa? O que as mulheres com filhos pequenos, com maridos trabalhando fora, quando estes não iam embora, faziam quando não existiam políticas de educação infantil e assistência social? Ficavam sozinhas? E quando essas mulheres precisavam trabalhar? Deixavam seus filhos sozinhos? Não trabalhavam?

Sabemos as respostas para estas perguntas, mas alguns de nós demoramos muito tempo, ou melhor, muito de nós ainda nem se quer considera que essas redes criadas, essas formas de produzir cuidado, como formas de organização política.

Erramos!

E quando digo erramos, eu estou falando de nós quem? Nós, a esquerda. Não, não é um governante, não é um partido, estou falando de nós que nos organizamos para mudar o mundo. Erramos.

Erramos em achar que para mudar o mundo precisaríamos industrializar o Brasil ao máximo. Transformar num grande país capitalista para aí sim criar uma classe trabalhadora de verdade, com consciência de classe, que, consequentemente, ia mudar o mundo.

Assim erramos, confiando unicamente na gestão governamental como estratégia de transformação. E deixando claro, que bom que muitos de nós resolvemos comprar essa briga dentro da máquina, dentro do Estado, pois ele tem sim, e é inegável isso, um poder de promover a melhoria da vida das pessoas. Erramos não em participar desse espaço, erramos em só participar deste espaço e ignorar as outras formas de organização política.

Mas eu não estou falando só de 2016, eu estou falando de 1964 e 1954 também. E aí sim eu estou falando dos partidos, dos sindicatos, das centrais patronais, das grandes entidades estudantis.

Erramos não por traição a classe trabalhadora, erramos na estratégia. Em achar que aqueles que estão, assim, no presente, na Câmara, no Senado, deixariam tranquilas as leves mudanças que ocorreram na estrutura social, mas de um peso gigantesco para os trabalhadores que durante anos passaram distantes do olhar das políticas públicas.

Mas erra mais ainda quem acha que os trabalhadores passaram e passam pelos constantes ataques à democracia e a jovem Constituição de 1988 neutros, paralisados. O único problema, e por sobrevivência política, estas mobilizações passam por fora das grandes entidades de organizações dos trabalhadores e estudantes, que foram e ainda são de extremamente importância para diversos trabalhadores e da qual muita gente morreu para que elas existissem. Mas estes trabalhadores, que por sobrevivência política se mobilizam por fora, se mobilizavam pelo nosso erro tático em achar que uma representação já basta, um congresso de 4 em 4 anos já basta, um conselho de saúde nacional, estadual, municipal, local, basta. Estes espaços existem e são de extrema importância para muita gente, mas para muitos não. Sabe por quê? Por negar o que está fora dela como participação popular. Como interessante, exótico, mas impossível de ser um agente decisório nos processos de condução das políticas.

A participação legítima só se dá através de um. De resto, é baderna. Eu queria saber em que momento da história a “baderna”, sim a baderna, e quero inclusive que vocês pensem no sentido negativo da baderna, em que momento da história deixou de ser uma participação popular?

Para muitos, a luta dos trabalhadores da saúde contra a precarização e terceirização do SUS é baderna de inocentes desinformados, não é participação. Do mesmo modo que nem a luta dos garis no Rio de Janeiro, a luta dos professores em São Paulo, as jornadas de junho e a ocupação das escolas estaduais em São Paulo e no Rio de Janeiro não passaram de baderna.

Aos baderneiros do Centro, da Norte, da região do Butantã, do HU, eu dedico esta fala3. Não só pela organização em defesa do SUS na cidade de São Paulo, mas pelos encontros, pelos debates, pelos estudos e pelas novas formas de sociabilidade que eles trazem para o SUS aqui.

E olha só, não era por isso que nos organizamos no Movimento de Reforma Sanitária? Não era para pintar parede, era, através da constituição de uma política participativa, o caminho, não para construir um sistema gratuito de saúde, este é o meio, mas para construir novas formas de sociabilidade e modificar a estrutura social vigente.

O CEBES, em um documento de 1979 diz assim:

 

São necessárias medidas que organizem este sistema de forma descentralizada, articulando sua organização com a estrutura político-administrativa do país em seus níveis federal, estadual e municipal, estabelecendo unidades básicas, coincidentes ou não com os municípios, constituídas por aglomerações de população que eventualmente reuniriam mais de um município ou desdobrariam outros de maior densidade populacional. Esta descentralização tem por fim viabilizar uma autêntica participação democrática da população nos diferentes níveis e instâncias do sistema, propondo e controlando as ações planificadas de suas organizações e partidos políticos representados nos governos, assembleias e instâncias próprias do Sistema Único de Saúde; esta descentralização visa, por um lado, maior eficácia, permitindo uma maior visualização, planificação e alocação dos recursos segundo as necessidades locais. “Mas, visa, sobretudo, ampliar e agilizar uma autêntica participação popular a todos os níveis e etapas na política de Saúde4

 

E o golpe? E a “Ponte Para o Futuro”? Será mesmo que alguém aqui precisa falar o quanto isso vai ser prejudicial para o SUS? Para a participação popular? E não estamos falando de um retrocesso de 12 anos, estamos falando de um retrocesso de 70 anos para algumas políticas públicas.

Mas olha, todo esse momento de crise foi propício para algo extremamente positiva: viramos baderneiros.

O que quero dizer com isso? Quero dizer que é lindo, fantástico, ouvir relatos de amigos mais velhos dizendo que encontraram outros amigos da época das Diretas Já!, do Fora Collor, novamente nas ruas, lutando por fora da institucionalidade. Ver as organizações clássicas, nossas grandes organizações, que durante muito tempo ficaram longe nas ruas, a não ser em simbólicos dias de feriado, longe do trabalho de base, indo lá, repensando, pensando novas estratégias de mobilização, se juntando, juntando com companheiros de outras organizações mais novas e com posições bastantes críticas ao PT inclusive, se reunindo para pensar estratégias para barrar o golpe. Ouvir e ver diversos movimentos sociais, que durante muito tempo foram esquecidos por nós, principalmente os da periferia, fazendo diversos movimentos, com destaque para os coletivos que compõem a organizando da Periferia Contra o Golpe5. E para estes um destaque de extrema importância: se reconhecemos a importância das entidades clássicas de mobilização dos trabalhadores e estudantes, se reconhecemos a importância da disputa pela gestão do Estado Democrático, se reconhecemos os conselhos, as formas institucionais de participação como legítimas por diversas pessoas darem sua vida pela existência deles e pela democracia, não podemos esquecer que até hoje existem diversas pessoas que ainda são torturadas e assassinadas por defender novas formas de democracia. E na grande maioria das vezes, a gente nem liga para estas pessoas.

Assim, nosso principalmente desafio não é só juntar estes setores contra o retrocesso, é entender que existem diversas formas de participação popular e diversas formas de se entender a democracia. Não fiquem bravos porque alguns movimentos da periferia não estarão com vocês nos atos na Sé e na Paulista, eles estão nos seus locais de moradia e militância lutando pela sobrevivência e pela justiça daqueles que foram mortos lutando por querer viver uma vida democrática. Nosso desafio, através da autocrítica, é criar conexões entre estas lutas na luta contra o golpe.

Não digo a vocês “às ruas”, digo a vocês “às ruas, às casas e às fábricas”

Por fim, Rosa Luxemburgo, escreveu um texto que sintetiza muito bem não só o porque somos militantes da Reforma Sanitária, mas também porque lutamos contra o golpe:

 

Se para a burguesia a democracia tornou-se supérflua ou mesmo incômoda, ela é, em contrapartida, necessária e indispensável à classe operária. É necessária em primeiro lugar porque cria formas políticas (administração autônoma, direito de voto etc.) que servirão de pontos de apoio ao proletariado em seu trabalho de transformação da sociedade burguesa. Em segundo lugar, é indispensável porque só por meio dela, na luta pela democracia, no exercício de seus direitos, pode o proletariado chegar à consciência de seus interesses de classe e de suas tarefas históricas.Em suma, a democracia é indispensável não porque torna supérflua a conquista do poder político pelo proletariado, mas, ao contrário, porque torna necessária essa tomada do poder e só ela a torna possível6

 

É isso.

 

Referências

1 O debate foi transmitido online pela TV Drone e você pode ver ele completo aqui

2 Page do Núcleo São Paulo do CEBES

3 Vocês podem encontrar informações sobre a luta dos trabalhadores da saúde na cidade de São Paulo aqui e aqui

4 A Questão Democrática na Área da Saúde, 1979

5 Page da Periferia Contra o Golpe

6 Reforma Social ou Revolução (1899), de Rosa Luxemburgo. Trecho retirado do livro “Rosa Luxemburgo – Textos Escolhidos”, de organização de Isabel Loureiro e publicado em 2009 pela Editora Expressão Popular.