Moção pública contra a desvinculação de receitas para a saúde
A Proposta de Emenda à Constituição 143/2015, que tramita já em 2º turno no Senado, pretende alterar, de forma abusiva, o regime constitucional de vinculações de receitas, patamares de gasto mínimo e fundos, por meio da alteração do caput do art. 76 e da instituição dos arts. 101 e 102, todos no bojo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT.
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O conteúdo de tal PEC reside na reinstituição – em tese, por mais 4 (quatro) anos – da chamada “Desvinculação de Receitas da União” – DRU, cuja validade havia findado em 31/12/2015, por força da redação dada ao art. 76 do ADCT pela EC 68/2011. Mas não apenas isso. Agora a ideia de desvinculação de 25% (vinte e cinco por cento), ou seja, 1/4 (um quarto) pretende alcançar também as receitas, os deveres de gasto mínimo e os fundos dos Estados, DF e Municípios.
Foram excetuadas da sua incidência tão somente as vinculações protetivas da repartição federativa de receitas, a contribuição social do salário-educação e o dever de aplicação mínima de recursos em manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da CR/1988. Serão, pois, afetados pela abrangente regra de DRU/DRE/DRM o custeio mínimo das ações e serviços públicos de saúde (art. 198), as contribuições sociais que amparam a seguridade social e as contribuições de intervenção no domínio econômico (como se lê nos arts. 149 e 195 da Constituição), bem como todos os fundos e órgãos que tenham alguma vinculação orçamentária a seu favor.
Cabe aqui, de plano, a pergunta: por que somente o piso constitucional da educação foi excetuado, quando igual proteção é conferida à saúde? É absolutamente paradoxal e inconsequente essa discriminação entre direitos fundamentais de igual estatura, vez que ambos gozam da garantia constitucional de custeio mínimo por todos os entes da federação, à luz dos arts. 198 e 212.
A perda de recursos para o custeio do SUS, em face do volume que fora aplicado em 2015 por todos os níveis da federação, caso seja adotado esse corte linear de 1/4 a pretexto de desvinculação, alcança a cifra estimada de R$80 bilhões. Ou seja, o risco é de desmonte expressivo da já precária situação da saúde pública brasileira.
Outra questão que também merece ser trazida à tona é a absoluta contradição do debate havido no Congresso Nacional. Enquanto o Senado Federal pretende reduzir linearmente o custeio das ações e serviços públicos de saúde por meio da PEC 143/2015, a Câmara pretende corrigir a falta de custeio suficiente por meio da majoração progressiva dos porcentuais de aplicação mínima da União ao longo dos próximos sete anos, como se pode ler na PEC 01/2015 que lá tramita.
Em uma necessária retomada histórica, vale lembrar que a origem de tal instrumento de desvinculação orçamentária remonta à Emenda de Revisão n.º 01/1994, tendo sido mantido – mediante pequenas alterações de conteúdo e forma – ao longo das Emendas n.º 10/1996, 17/1997, 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011.
Essas 7 (sete) Emendas Constitucionais, no decurso dos últimos 22 (vinte e dois) anos, deflagraram um processo de “erosão constitucional” sobre as garantias de consecução material dos direitos sociais pela via da limitação do financiamento das políticas públicas que lhes dizem respeito.
A perpetuação da DRU e a sua extensão a Estados e Municípios (DRE e DRM) por meio de tergiversadora regra no seio do ADCT afetam a natureza jurídica das contribuições sociais ao desvincularem-nas (ainda que parcialmente) de sua afetação à seguridade (arts. 149 e 195). Como Machado Segundo (2005, p. 181) alerta, se quisesse tributos desvinculados, a União deveria criar impostos no uso de sua competência residual e reparti-los devidamente na forma do art. 157, II da CR/1988.
O debate no Supremo Tribunal Federal, a esse respeito, certamente será instigado a retomar o precedente do Recurso Extraordinário 566.007/RS, para firmar a inconstitucionalidade da mitigação, que remonta a 1994 e poderá se estender até 2020, da destinação de 25% (vinte e cinco por cento) da arrecadação de contribuições. Cabe, pois, o alerta de que 26 anos de regime transitório e excepcional não é socialmente admissível, tampouco constitucionalmente adequado: eis o caráter abusivo e tergiversador da desvinculação!
Ora, a vedação de retrocesso no âmbito dos direitos sociais deve ser interpretada de forma conjugada com a proteção que é conferida a esses direitos como “cláusula pétrea” e deve buscar garanti-los materialmente, além do seu enunciado formal.
Os dispositivos constantes dos arts. 71, 72 e 76 do ADCT apenas e tão somente se legitimaram no ordenamento brasileiro na condição de regra temporária e excepcional. Agora, em 2016, – passados 22 anos desde sua primeira instituição – essa nova prorrogação da DRU (verdadeira perpetuação) e a criação da DRE e da DRM operarão como meio falseado de ajuste fiscal, contra a expressa dicção do texto permanente da Constituição.
A administração da crise financeira com seus mecanismos ditos excepcionais de redefinição de prioridades orçamentárias tem se tornado, por si só, uma nova regra de priorização que atua em uma lógica de neutralização, no médio prazo, das vinculações estabelecidas na CR/1988. Afasta-se, com isso, a ideia de que se está a tratar de medida temporária e excepcional, diante de tamanha longevidade e desvio de finalidade.
Fato é que a DRU, ao que se somam a DRE e a DRM, efetivamente reduzem a obrigatoriedade constitucional de os entes políticos alocarem recursos nas áreas de saúde (art. 198, § 2º da CR/1988) e na manutenção integral do orçamento da seguridade social (art. 165, §5º, III c/c art. 195 da CR/1988), sem se falar nos fundos e órgãos que têm receitas próprias a eles vinculadas.
A teor do art. 167, IV, em sua parte final, da Constituição, as vinculações orçamentárias asseguradoras de piso de custeio para os direitos fundamentais à saúde e à educação foram expressamente excetuadas do princípio geral de não afetação da receita de impostos, por força da sua condição de conteúdo mínimo de validade das leis orçamentárias anuais de cada ente da federação.
O comando de imutabilidade que confere máxima proteção aos direitos fundamentais também se estende às suas garantias estatuídas constitucionalmente, no que se inserem os deveres de gasto mínimo e a vinculação de receitas, tal como se lê no art. 60, §4º, IV da CR/88.
Assim, se considerar a fórmula dada por Alexy, segundo a qual: “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção”, pode-se questionar como desproporcional e abusivo o fato de que a desvinculação, ou seja, a alocação discricionária de 25% (vinte e cinco por cento) de todos os impostos e contribuições dos três níveis da federação, via ADCT e por prazo tão longevo, na prática, estabelecerá tanto um novo patamar de gastos mínimos a serem executados (como, por exemplo, com saúde), quanto um novo sistema tributário de financiamento da seguridade social.
Ora, essa redefinição restritiva – via ADCT – das prioridades alocativas inscritas no texto constitucional tem sido empreendida desde 1994, sem que isso tenha sido explícita e diretamente discutido e aprovado pelo Legislativo na forma de emenda aos dispositivos permanentes da CR/1988, para rever as próprias vinculações ali instituídas para execução de gastos mínimos setoriais (a exemplo do art. 198) e para destinação de receitas (arts. 149 e 195).
Desvio de finalidade e falta de transparência ocorre no seio do instituto da desvinculação de receitas exatamente em função de estar sendo ele reinstituído e interpretado inequivocamente contra a própria finalidade publicística a que veio, qual seja, aplicar maiores recursos “no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de prestação continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros programas de relevante interesse econômico e social”, tal como previa a parte final do caput do art. 71 do ADCT, na redação dada pela ECR nº 1/1994.
Ao instituir uma regra, em tese, “excepcional”, de forma paralela e ao se retirar do cenário em que a discussão sobre haver despesas mais ou menos vinculadas explicita o rol de prioridades orçamentárias do corpo permanente da Constituição de 1988, o Poder Constituinte Derivado mitiga – inconstitucionalmente – o nível (determinado pelo texto permanente da Carta Magna brasileira) de obrigatoriedade de alocação de recursos para gerir, em sede de decisões administrativas discricionárias, uma crise financeira que remonta a 1994 (!).
A ECR n.º 01/1994, as Emendas n.º 10/1996, 17/1997, 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011, na prática, promoveram temporariamente a desvinculação de 20% e agora a PEC 143/2015 pretende reeditar essa fixação de limites menores para as atuais vinculações postas na CR/1988 em patamar de 25% de desvinculação aplicável a todos os entes, sem justificar tal profunda agressão ao ordenamento pátrio em sua dimensão primeira de proteção aos direitos fundamentais.
É francamente um desvio de finalidade e verdadeira fraude à Constituição esse redesenho feito em relação aos próprios limites mínimos de gasto com as políticas públicas vinculadas, bem como quanto à natureza tributária específica das contribuições sociais, por meio de várias emendas contingenciais ao texto do Ato das Disposições Transitórias da CR/1988.
Assim sendo, não se pode reputar como constitucionalmente adequada qualquer iniciativa legislativa que vise reinstituir a DRU, bem como ampliá-la para Estados e Municípios, como ora se pretende com a PEC 143/2015.
A perpetuação da DRU e a criação da DRE e DRM via ADCT lesa os arts. 167, IV, 195, 196 e 198 da CR/1988, ao faticamente dar causa à insuficiência de recursos para o custeio constitucionalmente adequado dos direitos sociais amparados por diversas formas de vinculação de receita e/ou despesa, em rota de lesão aos princípios da vedação de retrocesso e vedação de proteção insuficiente.
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco
Centro Brasileiro de Estudos da Saúde – Cebes
Instituto de Direito Sanitário Aplicado – Idisa
Associação Brasileira de Economia da Saúde – Abres
Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde – Ampasa
Associação Nacional do Ministério Público de Contas – AMPCON
Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Contas – CNPGC
Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos de Minas Gerais – Federassantas
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-SP
Clínica de Direitos Humanos da UFMG
Fonte: ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Acompanhe a tramitação da PEC 143/2015 no Senado através deste link: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123909