avenida Paulista
Chove em São Paulo. Os transeuntes reclamam, os carros buzinam e a caravana passa. A performance com a maca, paciente e médicos rola na avenida na mais debochada toada. E as cores tomam conta de tudo sem a menor preocupação com questões de gosto.
Eis que surge do meio do povo a frase insólita. Sobre o fundo preto, explode em laranja a certeza: “só os loucos sabem!!!”. Dou meia volta no mesmo instante e desisto de ir embora. Há algo aqui da mesma ordem do que chamou a atenção de Peter Pal Pelbart quando disse haver uma imaginação política destampada pelos secundaristas em sua ocupação das escolas. Ruptura e dissenso.
https://outraspalavras.net/brasil/pelbart-tudo-o-que-muda-com-os-secundaristas/
Ruptura e dissenso. Mas, não fomos ensinados a pensar que os loucos são os que, privados de razão, devem ser tutelados?
Não eram eles que saíam ou eram “saídos” das cidades na idade média para o passeio à deriva no mar? Tornavam-se os passageiros por excelência, ou os prisioneiros da passagem. Morrer à míngua era o destino inexorável da experiência dramática dos insanos daqueles tempos. Mais tarde, com o advento das “luzes”, veio o grande encarceramento. Ainda sem muito “critério”, juntavam-se os desvalidos de toda natureza, leprosos, mendigos, loucos, nas hospedarias ou proto-hospitais. E, por fim, chegaram os asilos de loucos, nova tecnologia da já nascente psiquiatria, cujos dispositivos habitam impávidos os nossos dias, travestidos ou não.
Só os loucos sabem. Ruptura e dissenso. De que inusitada sapiência nos fala a frase?
O ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme, dizia Deleuze.
Sim, talvez seja isso: os que têm alguma “demência” não desmoronam. São os que conseguem ser humanos, não se prendem nem se impõem a si a obrigação absurda e impossível de serem divinos, de nunca errarem. Não se obrigam a se sacrificarem pelo que os ‘outros’ querem ou esperam de si. São e deixam ser. Perdem o controle, porque é do ser humano – e animal? – nunca tê-lo de fato. Quem tenta a todo custo nunca errar, já se matou faz tempo. Só está esperando a hora de se enterrar. Mas, para quê? Talvez para se dar a glória de cometer o seu último maior e memorável erro.
Por Raphael Henrique Travia