Acolhimento da população trans* na perspectiva da Saúde Pública no Brasil com foco na Atenção Básica.
Santos (1956), de Alexander Calder. Óleo sobre compensado | Calder Foundation, New York (Foto: AUTIVS/Itaú Cultural)
por Alícia Krüger [1]
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), aprovada e publicada em 2006 (Brasil, 2006), é fundamentada nos princípios assistenciais e organizativos do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, integralidade e equidade, em um contexto de descentralização e controle social da gestão.
Tendo como base tais princípios assegurados, diversas lideranças LGBT e movimentos sociais organizados, através de muita pressão ao governo, ao longo do tempo, conseguiram com que o Ministério da Saúde apresentasse a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) para ser implementada no SUS. Sua formulação seguiu as diretrizes de Governo expressas no Programa Brasil sem Homofobia, que foi coordenado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) e que atualmente compõe o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3).
No papel tudo está devidamente concretizado, mas nem sempre se percebe o mesmo na prática; falhas relevantes se apresentam na aplicação da Política nos serviços de Saúde no País. Mas, se a política mostra-se tão clara, tão concreta, onde estaria o grande impasse que não permite que esta seja corretamente aplicada no cotidiano do SUS, principalmente em se tratando do atendimento à população trans*? Certamente há alguns pontos cruciais a serem elencados acerca de tal problemática:
Todo sistema pode beirar à perfeição quando ainda está no papel, todavia, vale lembrar que este será executado por pessoas, seres humanos com diferentes percepções sobre o que ali está escrito e também com posições sócio-políticas e os famigerados valores morais dos mais variados tipos, o que cria um caldeirão de opiniões pessoais influenciando na aplicação daquilo que deveria ser UNIVERSAL;
Pressões políticas vindas de todos os lados: Facções que, “embasadas” em filosofias partidárias ou mesmo próprias, defendem uma abordagem igualitária para o atendimento a todas e todos, alegando que a população trans* não deve ser priorizada; esquecendo-se de um simples detalhe: O SUS NÃO prevê a igualdade e sim a EQUIDADE, onde cada uma e cada um (a) DEVE ser acolhida (o) e atendida (o) conforme suas especificidades, seja de sintomática, ou mesmo de fatores sociais que também influenciam na qualidade de vida e logo na saúde da pessoa, indo contra a própria política do SUS já instaurada;
Quiçá este seja [e é] o pior de todos os problemas enfrentados por pessoas trans* ao buscarem o atendimento em serviços de Saúde: a PATOLOGIZAÇÃO da condição. Antes mesmo da pessoa poder falar o que está sentindo, o que busca vindo até o estabelecimento de Saúde, esta já é tratada como uma doente apenas por sua apresentação social;
O Cartão nacional de Saúde conta com o benefício do uso do nome social para pessoas trans*. Há também o Decreto Presidencial que garante o uso do nome social para pessoas trans em âmbito do serviço público federal. Medidas importantes para as pessoas que não desejam retificar sua documentação e para aquelas que esperam a alteração judicial da documentação, todavia a falta de uma Lei de Identidade de Gênero que garanta alteração de prenome e gênero na documentação independente de cirurgia de redesignação sexual é um dos grandes problemas ainda existentes.
O SUS assegura à todas as pessoas os princípios de prevenção, promoção e recuperação da saúde humana, mas é quase impossível acreditar que tais princípios se estendam às pessoas trans* com tantos problemas enfrentados no dia a dia; frutos de uma construção cultural machista e preconceituosa que remonta do período colonial. Fica muito claro que a transfobia, assim como a homofobia são consequências da misoginia, onde qualquer desvio não só da heteronormatividade, mas sim do ser homem (cis), é considerado sinal de fraqueza, minoridade, insignificância.
Devemos lembrar que muitas dessas pessoas (que configuram a maioria “soberana” da sociedade modelo que temos) que são criadas ainda neste modelo arcaico é que chegam às universidades (que infelizmente e incoerentemente acabam por ser poços de preconceito), e formam-se médicas (os), enfermeiras (os), farmacêuticas (os), fisioterapeutas, nutricionistas sem o menor conhecimento do que é um ser humano e do que é a prática da promoção da saúde integral e, ao se depararem com uma pessoa trans* em seus consultórios certamente não sabem como agir, consequentemente, neste pequeno espaço de tempo, rasgando seus belos diplomas e quebrando o famigerado juramento de Hipócrates, proferido no dia de suas formaturas, onde se comprometem a serem éticos, profissionais e HUMANOS.
Isso tudo, porque trato aqui somente de um aspecto muitas vezes esquecido pelos órgãos de Saúde: a atenção básica; pois trans* não precisa só de cirurgia de redesignação sexual, implantes de silicone, bioplastias, mamoplastias e afins. Pessoas trans* também têm gripe, dor de barriga, garganta, precisam se vacinar, ou seja, são seres humanos com necessidades básicas de atendimento. O grande erro, gerado pela intensa patologização trans* é justamente focar demasiadamente nos aspectos patologizantes e estéticos e esquecendo-se que existe todo um sistema de atenção primária que deve ser também muito acolhedor a todas/os!
Solução? Deve haver, no dia em que a Saúde seja tratada com seriedade, com investimentos não somente em pessoal, equipamento e estrutura, mas também e principalmente na capacitação, desde o ensino superior, das (os) futuras (os) profissionais da saúde em questões de humanização, já que esta se mostra uma habilidade não congênita desses nossos queridos colegas.
[1 ]Farmacêutica Generalista. Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduanda (Especialização) em Gestão da Política de DST, Aids, Hepatites Viras e Tuberculose pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Palestrante sobre direitos civis e hormonoterapia para pessoas trans*.
Trans*: Pessoas cujas identidade de gênero e expressões não estão em conformidade com normas e expectativas tradicionalmente associadas ao sexo definido no nascimento. Nessa definição são incluídas transexuais, transgêneros, travestis e outras pessoas com gênero não binários. Pessoas trans podem se autoidentificar como transexuais, travestis, mulheres trans, homens trans, homens, mulheres, ou outras identidades trans.
Por Elida Rodrigues
Alícia, a misoginia é tão vivenciada em nossa sociedade que não nos damos conta disso no cotidiano, naturalizamos mesmo! As duas identidades binárias (homem e mulher )são dogmas que atravessa a implementação de diversas políticas públicas, principlamente voltadas para a Saúde da Mulher, com pautas como Parto Humanizado e Violência contra a mulher. Se por um lado o o papel aceita tudo, por outro os profissionais de saúde não.
Uma reflexão a partir da incipiência da implementação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT é que precisamos investir na formação dos profissionais de saúde, pois são eles que no final das contas vão ofertar o processo de cuidado aos usuários, assim se ele for um profisional religioso dogmático, especialista em uma parte do corpo e acha sabe mais que o usuário e o resto da equipe sobre o processo de saúde/doença daquela pessoa, não tenho dúvida que seu exercício profissional, independente da singularidade de cada questão de saúde, será pouco acolhedor, desrespeitoso, cheio de julgamento moral e poderá produzir ainda mais sofrimento.
Acredito na formação em “Ciências Humanas” para os profissionais de saúde e não apenas na formação técnica como “saber dar um injeção, prescrever um medicamento, saber de protocolos”, precisamos enfatizar os sujeitos, as pessoas que precisam de cuidado em saúde, como produtores de realidade, pois há diferentes intensidades de sofrimento e saberes de cuidado e autocuidado. Quando falamos que precisamos formar profissionais de saúde mais humanos, ou seja, relações entre profissional e paciente mais humanas, poderia ser óbvio, poderia ser redundante, mas não é.
Não há como produzir cuidado em saúde apenas com leis, normas, cartilhas e protocolos, precisamos de pessoas, e ainda, pessoas humanas!
Agradeço a conexão Alícia…