Na última segunda-feira, dia 03.10.16, teve início o curso de extensão “Comunicação e Saúde: espaços, estratégias e atuação”, promovido pela Associação Paulista de Saúde Pública – APSP. O objetivo do curso é estimular a reflexão sobre o desenvolvimento de tecnologias de comunicação e sua utilização no campo da saúde, assim como sobre os processos e instâncias de mediação.
Cheguei à primeira aula – de Wilma Madeira, docente em cursos de pós-graduação do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês (IEP/HSL), Centro Universitário de Volta Redonda e da Faculdade de Medicina do ABC – imaginando como eu e os demais participantes nos comunicaríamos entre nós (quais os contextos intertextual, existencial, e situacional de cada pessoa). Como seria nosso primeiro contato um dia após os resultados do primeiro turno das eleições municipais no Brasil, em que o grande destaque foi o número de votos para “ninguém” (1). Como debater uma importante ferramenta das políticas públicas de saúde – a comunicação! – em um contexto de ausência de interesse dos eleitores pela política e pelos políticos em geral?
Wilma começou a aula com a dinâmica do cochicho: grupos de duas (e um de três) pessoas cochicharam entre si para se conhecer. Cada um conta um pouco de si para o outro, e o outro apresenta a pessoa para o grupo. A partir dessa atividade inicial, já começamos a perceber as modificações sofridas pelas mensagens a partir do contato com o outro. O que falamos é uma coisa, o que chama a atenção de quem nos ouve é outra. Assim cada um apresenta o colega ou a colega de outra forma, diferente da forma como cada apresentaria si próprio ao grupo. Tudo depende do contexto, do termo utilizado, etc, havendo um ajuste para passar a ideia. Existe uma forma correta de passar a informação? A forma correta é passar aquilo que entendi. Temos a necessidade de compreender o que o outro fala. O tempo todo fazemos construções simbólicas de ideias. Quando o outro nos apresenta isso tem uma força de construção do coletivo.
Ao falar sobre os símbolos, Wilma faz uma observação interessante sobre as muitas siglas da área de saúde coletiva: somos especialistas em siglas para deixar as outras pessoas de fora!
Em seguida, Wilma nos propôs uma segunda dinâmica: cada um escreveu em um pedaço de papel o que entendia por “comunicação” e por “comunicação em saúde”, para sabermos quais os conhecimentos prévios de cada participante. E este foi o resultado:
Com essa dinâmica percebemos que ao nos comunicar devemos sempre considerar que cada pessoa tem conhecimentos prévios ao nosso contato com ela, da mesma forma que temos também nossos conhecimentos prévios antes de nos encontrarmos e nos comunicarmos com outras pessoas.
A partir de nossos conhecimentos e ideias previas sobre comunicação e comunicação em saúde, Wilma foi nos passando os referenciais teóricos do campo da comunicação social, e as teorias e modelos de comunicação, entre eles:
– Modelo de Shannon & Weaver (matemático informacional): o emissor passa a mensagem ao receptor através de um canal, e se a mensagem não chega existe um ruído (comunicação é funcional, não é processo social);
– Modelo de Lazarsfeld Schramm (comunicação em duas etapas): mesmo esquema do modelo anterior, mas com inclusão do ruído como integrante do esquema comunicacional, e de mediadores formadores de opinião (comunicação como processo social de duas etapas);
– Teoria do Poder Simbólico de Pierre Bourdieu: a sociedade é organizada segundo um capital simbólico (capitais econômico, cultural e social que se retroalimentam), a que corresponde um poder simbólico, que resulta em legitimação do emissor e da mensagem;
– Paulo Freire: comunicação dialógica (partindo da realidade em que as pessoas estão inseridas);
– Moscovici: comunicação e representações sociais;
– Inezita Soares: comunidades discursivas.
Os modelos e teorias comunicacionais acompanharam o contexto histórico-político da época em que se disseminaram, e coexistem em nossa realidade atual.
A teoria de Bourdieu me trouxe várias reflexões em relação ao capital simbólico, e como a legitimação (ou deslegitimação) das falas e das pessoas produz seus efeitos na área de saúde. Lembrei como as pessoas reproduzem informações do médico Drauzio Varella como verdades sobre qualquer assunto. Recebi da minha mãe por whatsapp um vídeo a respeito de uma película protetora da tireoide em exames de raio-x que poderia evitar o câncer, situação aventada como possibilidade numa coluna de Drauzio Varella no programa Fantástico, disseminada nas redes com teor de evidência médica.
É também interessante pensar como um diagnóstico patológico pode influenciar essa legitimação. Muitos clientes me procuram para pedir auxílio em relação à assistência farmacêutica para pessoas com diabetes justamente porque eu tenho essa doença. E vem se proliferando o número de profissionais com diabetes que atendem pessoas com esse mesmo diagnóstico. Seria então o compartilhamento do diagnóstico, a experiência em comum com a doença, uma forma de legitimação dos profissionais, adicional à legitimação pelo conhecimento técnico? Em sentido oposto, alguns pacientes questionam as prescrições dos profissionais de saúde quando percebem sua dissociação da experiência prática com a doença, mesmo confiando no conhecimento técnico do prescritor.
Antes do debate final entre os participantes, Wilma nos faz uma pergunta inquietante: a linguagem limita ou expande o pensamento?
No encerramento da aula, Wilma nos deixou duas questões finais, que combinamos debater aqui na Rede HumanizaSUS (um outro motivo para eu publicar esse post, além de compartilhar a experiência dessa aula deliciosa!):
Qual o modelo teórico de comunicação é o atualmente mais utilizado pelo campo da saúde? Pelo SUS? Identificado nas diferentes mídias?
É possível (útil) conceber uma prática de comunicação dialógica na saúde? Como ela se daria? Qual impacto traria para o imaginário da saúde nas diferentes mídias?
Vamos então ao debate?
Ainda que “ninguém” tenha sido a escolha política nas eleições municipais, há ainda muitas pessoas que acreditam nas políticas públicas como instrumentos de promoção da justiça social, em especial a política de saúde. E a comunicação e o diálogo são algumas das ferramentas dessa construção colaborativa!
Referência:
(1) Artigo de María Martín publicado no periódico El País “Não voto, não ligo, não confio: a cabeça do eleitor que ‘venceu’ esta eleição municipal”: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/03/politica/1475522954_666169.html
Wilma Madeira fala sobre a aula para a Rádio Web Saúde USP
Por Evaldo
LIÇÃO DE CASA
Qual o modelo teórico de comunicação é o atualmente mais utilizado pelo campo da saúde? Pelo SUS? Identificado nas diferentes mídias?
Há uma mistura dos diferentes modelos apresentados.
No campo da saúde e nas diferentes mídias acredito que ainda prevalece o modelo “matemático informacional”. O modelo de comunicação em duas etapas, que pressupõe um mediador para diminuir o “ruído” do canal, acho que seria a forma clássica de um professor na sala de aula, isto é, uma comunicação para a educação tradicional. Os dois modelos dão relevância para a existência de um canal unidirecional, de um emissor para um receptor.
No SUS, temos os dois modelos, mas com as rodas de conversas, o canal passa a ter duas vias e o diálogo começa a prevalecer, onde a relação, a interação, passa a ter alguma relevânica. Interessante perceber que nesta troca dialógica, a questão do poder passa a ser discutida na comunicação com a teoria do Capital Simbólico de Bordieu. Comunicar como troca não é isenta de uma disputa por valores, e o poder faz parte desta troca/disputa (por exemplo, dizer se o impeachment de Dilma foi golpe, ou não).
Infelizmente o SUS ainda carece de uma organização dialógica e democrática, pois o seu princípio, na oitava conferência, foi democrático, mas de uma democracia representativa pautada no modelo em duas etapas (de delegados com a missão de representar a voz de trabalhadores, gestores e usuários, diminuindo o “ruído” de uma democracia direta).
É possível (útil) conceber uma prática de comunicação dialógica na saúde? Como ela se daria? Qual impacto traria para o imaginário da saúde nas diferentes mídias?
Coloco para esta resposta uma adaptação de Raquel Recuero (“Redes Sociais na Internet”) que teoriza a ideia de organizar o “Capital Social” pelas redes sociais, que coloquei no Facebook há 2 anos:
“Conectar, Compartilhar, Interagir, Colaborar e Instituir!
Superamos as resistências da conexão, o avanço tecnológico torna este procedimento cada vez mais acessível, mais fácil e mais barato.
O compartilhar envolve cognição, conhecimento da linguagem, desejo de comunicação. Aos poucos, isso acontece.
Interagir é mais difícil, exige uma predisposição de trocar ideias e o procedimento nem sempre é confortável, por isso a necessidade do presencial, para começarmos a ter o “capital social” no sistema.
Colaborar depende de um capital social pleno, uma clareza na colaboração, para onde queremos chegar.
Instituir é o sonho! A instituição, o SUS funcionando como uma verdadeira Rede de Atenção da Saúde.
É este o modelo teórico e estratégico de implantação de uma rede de pessoas, não apenas uma rede de serviços.
Parece simples, mas sei que não é.”
Até terça!
Evaldo