A medicina que olha o paciente e não a doença
Hematologista, pós-doutora em medicina integrativa, Paola Tôrres foi ao interior e contou a história dos pacientes em forma de repente
Paola Tôrres é hematologista, tem 50 anos, contou as histórias de seus pacientes em forma de repente e rodou 3 mil quilômetros fazendo um documentário sobre as pessoas, o câncer e a vida. Mulher que alteia a voz quando fala de ajuda e compartilhamento. Que tem pós-doutorado, mas também a certeza de que título não diz quem se é. A médica sabe cuidar dos pacientes, do corpo, da alma, das angústias. Difunde a Medicina Integrativa no Brasil. E faz isso por missão, porque veio ao mundo para fazer diferente. Paola canta e chora quando fala do sertão. Natural de Gravatá, em Pernambuco, tem na terra batida e na simplicidade do povo a maior identidade. Ela sabe que o fim chega, mas sabe o quanto é bom aproveitar até o fim.
O POVO – Seu avô foi poeta, homem do povo, das pessoas. Você acha que herdou dele essa entrega ao mundo?
PAOLA TÔRRES – Meu avô era defensor público, numa época em que esse cargo nem existia. Atendia a população necessitada, gratuitamente. Sempre foi inspiração para mim, e me reconheço nessa história de ter afinidade pela cultura popular. Venho desse lugar, de achar que a gente partilha códigos com as pessoas, códigos culturais. Quando isso acontece você consegue conversar de forma mais próxima, e o que mais me encanta é que as pessoas se reconheçam em mim e eu nelas.
OP – Saber estar em vários lugares é característica especial, rara.
PAOLA – Sim, e acho que o médico tem de ter essa propriedade. O anel do médico tem o caduceu de Asclepius, que também tem as asas de Mercúrio, único deus que conversava com Zeus e conseguia também entrar no inferno, no Hades. Vivenciei isso na minha vida quando atendi uma aluna da minha mãe, em Olinda, que havia sido estuprada. Eu a reconheci, morta. Em seguida, entrei na sala de cirurgia do homem que foi linchado pela população por ter matado a menina.
OP – Como é lidar com esses extremos da vida?
PAOLA – É claro que você sente, mas naquele momento você está sob juramento e ele te isenta da coisa da moral ou da ética de atender ou não. Te isenta da tua própria opinião. Sua função como médico é manter a integridade de salvar a vida do outro. Mas não é manter a vida a qualquer custo. É manter a vida.
OP – Qual a diferença?
PAOLA – Manter a vida a qualquer custo é quando você tem um paciente que você sabe que o ciclo dele está entrando numa terminalidade e você mantém sua vida com métodos invasivos. Distanciando da família, afastando-o de tudo que ele conhece, que é sagrado para ele. É o que chamam distanásia. Manter a vida é quando você faz uma coisa chamada ortotanásia, em que você oferece os recursos para que o desenlace natural aconteça.
OP – Como é manter vivos pacientes no ciclo de terminalidade?
PAOLA – Tenho uma paciente que tem uma doença sem cura e, em qualquer lugar do mundo, ela teria oito anos de vida. E já está há 20 com a doença, mas não tem condições, por exemplo, de fazer uma quimioterapia. Comecei a conversar com ela, fazer uns chás florais, ensinei a fazer meditação. Nós conversamos sobre terminalidade e ela disse que queria ver a neta fazer 15 anos. Perguntou se podia beber um champanhe e eu disse que ela enfiasse o pé na jaca. Então, foi pro aniversário, bebeu e ficou feliz. Depois a nora engravidou e ela disse que queria ver o neto nascer. Nesta história, ela sempre está espichando um fiozinho da vida. Tenho certeza de que se tivesse feito uma quimioterapia, tentando levá-la para uma cura que não era possível, eu já tinha matado ela. Eu tinha matado ela do tratamento.
OP – Uma aliança entre médico e paciente que, hoje, é tão rara.
PAOLA – Hoje de manhã (quarta-feira, 5) estava dando aula e fui atender uma paciente, dona Maria Cleide. Ela tem 62 anos e um linfoma gástrico. Ela contou que sentia muita dor, que emagreceu 20 kg em três meses. Eu disse que estava com a biópsia na mão, que ia pedir outros exames e que passaria a quimioterapia. A consulta poderia ser só isso, né? Eu ouvi tudo que ela tinha a dizer e perguntei: dona Cleide, qual seu sentimento de estar passando por isso? Ela começou a chorar convulsivamente. Eu espero ela chorar, pego na mão dela, olho no olho e mostro que estou dilacerada em vivenciar aquilo. Ela diz que o marido a chama de “bunda murcha” e que a irmã lava a mão depois de pegar nela. Não é só o sofrimento de estar com câncer. Aí você entende o porquê do câncer ser um tabu e as pessoas terem tanto medo. Não é só uma doença, mas um isolamento afetivo e social. Quando você tem esse contato está ensinando o aluno a fazer uma medicina centrada na pessoa e não na doença.
OP – E a senhora aprendeu isso na faculdade?
PAOLA – Aprendi isso vivendo, fui paciente também. Enxergar o sofrimento das pessoas te instiga a buscar ferramentas para ajudá-las. Muitos pacientes saem do consultório e vão perguntar às atendentes o que o médico disse.
OP – As escolas de Medicina tentam mudar essa realidade?
PAOLA – Tentam, mas ainda existe muito o médico “the best”, que está em Harvard, e o “the bosta”, que está lá em Icó. Por quê? Tem uma música do Milton Nascimento que diz: “Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, todo artista tem que ir aonde o povo está”. Acho que o médico tem de ter esse mesmo espírito. Médicos que vão para o interior são os verdadeiros heróis, porque fazem medicina com pouco. Temos de empoderar essas pessoas. Quando fiz o documentário, percorri três mil quilômetros no Interior do Ceará. Se eu pegasse meus alunos e passasse uma semana com eles atendendo, vivenciando, vendo, sentindo o interior, isso valeria por um semestre da vida deles.
OP – Tratar do sangue tem o peso das doenças que correm o corpo inteiro. Mas também traz a questão do pulsar, da vida. Por que a hematologia?
PAOLA – Antigamente, os guerreiros bebiam o sangue dos inimigos. O imperador de Roma, Cláudio, quando precisou de uma transfusão, escolheu seu cavalo, o mais forte. O sangue tem essa questão, de levar vida. É o único tecido que se mexe dentro do organismo. O sangue é um tecido de fácil acesso. A pessoa tem leucemia, você fura a ponta do dedo dela, faz uma lâmina e já está vendo o câncer ali. E já pode começar a agir. Isso de poder fazer a coisa pelo paciente me encanta. Queria fazer cirurgia, mas aí fui para a hematologia, que furava osso, fazia biópsia, trabalhava com microscópio, que sempre gostei muito. Podia fazer tudo.
OP – Quando a gente fala da humanização da Medicina, além da questão da troca, existe a necessidade de que o ciclo funcione. O que é essa humanização?
PAOLA – A humanização é também a possibilidade, o retorno, o recurso. Falta a cadeia. Não adianta eu oferecer mamografia no Outubro Rosa. Tem de oferecer mamografia, biópsia e tratamento. Resolvi, por exemplo, ir à Secretaria da Saúde e fazer uma plataforma para capacitar médicos do Provab e do Mais Médicos sobre linfoma. Eles vão ser tutores de 15.634 agentes de saúde no Ceará. Porque venho há mais de dez anos dando aula sobre linfoma e o povo ainda chega com dúvida, com casos avançados da doença. Falta engajamento, diálogo. Falta muito da universidade. Nós, dentro da universidade, temos de apoiar a sociedade. É por isso que quando a universidade pede apoio da comunidade, não tem.
OP – E a universidade precisa se abrir para isso, saber como lidar com a comunidade para que essa aproximação aconteça.
PAOLA – Eu tenho de ir à secretaria na minha hora de almoço. Converso com o cara que vai fazer meu site, empoderando-o da importância disso para mim e como ele é importante no projeto. Não é dizer: “Taí meu amigo, você tem que fazer isso”. Quem sou eu? Por que se colocam os títulos acima das pessoas? O que é o título? Alguma coisa que não serve para nada, além de uma progressão. Título não pode ser além do que você é. A universidade é uma coisa viva, presente na vida das pessoas. Tem que ser inserida na vida da comunidade, aberta, dialogando, oferecendo. Nessa coisa da humanização, deveria facilitar processos. Mas, na verdade, não dialoga nem dentro dela mesmo. Há projetos incríveis que nem a própria universidade conhece.
OP – Falando em rede, em troca, o que a Medicina Integrativa propõe quando incorpora várias técnicas? Como ela ajuda os pacientes com câncer?
PAOLA – A Medicina Integrativa incorpora todas as técnicas da Medicina Alternativa, que são baseadas em evidência. Por exemplo, o Reiki. Pegaram dois grupos de ratos com a mesma doença e colocaram mãos de madeira e mãos reais em cima dos grupos. Melhorou o grupo que estava sob a mão humana. Hoje tem vários estudos mostrando que o Reiki tem impacto em melhorar o sistema imunológico do paciente. Tem trabalhos que mostram que, em pacientes que meditam, as moléculas de malignidade da superfície das células reduzem. A Medicina Integrativa incorpora técnicas que são julgadas por alguns médicos como que não servem para nada.
OP – Porque elas não têm comprovação científica?
PAOLA – Não, a maioria tem comprovação científica, mas não é algo que você vai aplicar em escala populacional. Você não tem como medir, a não ser através de uma pesquisa qualitativa. Muitas dessas técnicas são mensuradas através de histórias de vida dos pacientes. Já tem dosagem, por exemplo, que pacientes que fazem meditação têm níveis de serotonina diferentes. A Medicina Integrativa é aquela que coloca o paciente no centro do cuidado. Sai a doença, entra a pessoa.
OP – Como a senhora fez com a dona Maria Cleide?
PAOLA – Ela, por exemplo, é evangélica. Não ia adiantar eu dizer para ela fazer Kundal Yoga. Mas ela vai orar com o pastor dela e eu vou dizer que ela faz muito bem, que tem muita ciência mostrando que a fé tem impacto. Tem paciente que me pergunta se pode comer tudo. Claro que não, a quimioterapia fere tudo, da boca ao “fiofó”. Eu digo que ele precisa comer um purê, um arroz mole, uma carinho moída. Mas aí depois o organismo estará recuperado e a pessoa tem um dia para enfiar o pé na jaca, antes da próxima quimioterapia. Vai tirar um dia para comer churrasco, tomar cerveja, fazer sexo…
OP – Isso é parte da Medicina Integrativa?
PAOLA – É exatamente isso, de dar conta da pessoa. Tu imagina que tem médico que diz pra paciente que fez um esvaziamento da mama que ela não pode fazer a unha. Tu imagina o que é isso para determinadas mulheres? Não é que não possa fazer a unha, mas é porque cutucar na unha pode abrir passagem para uma infecção. Então é muito mais fácil dizer que não pode e muito mais difícil dizer que ela deve pegar o alicate e esterilizar. O médico não quer que ela ligue e encha o saco porque a unha está infectada. Dá trabalho. Ser médico dá trabalho.
OP – É preciso estar na realidade de cada paciente?
PAOLA – Você tem que dominar elementos que a pessoa tem na natureza, que tem perto dela. E dá trabalho, porque você precisa estudar os elementos culturais, quais as ervas indicadas. Isso é ciência e é muito mais difícil de fazer, porque é centrada no outro. É mais fácil fazer uma ciência de empurra. 85% dos pacientes com câncer procuram alternativas que deem suporte a eles.
OP – O SUS está preparado para essa Medicina Integrativa?
PAOLA – O SUS tem um sistema de fitoterapia das nossas ervas, fazendo um mapeamento. Criou a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. E não precisa desconhecer os grandes avanços da Medicina. Tudo isso é patrimônio da humanidade. A Medicina Integrativa é a Medicina da amizade. Nem tudo que o paciente precisa é remédio, às vezes é uma palavra, um conforto.
OP – Sobre o livro Por aí andei e o documentário Caminhos da cura, como a senhora escolheu o percurso?
PAOLA – Foi a medida que os pacientes iam chegando. Eu os atendia e perguntava se um dia podia visitá-los. Eles não acreditavam. Aí quando a gente chegava, eu e meus alunos, era aquela festa. Voltar ao sertão, conviver com meu povo, comer avoante, tatu, voltar às minhas raízes… Voltei a ser menina, dançar forró em terreno batido, dançar com meus pacientes.
OP – Quando se leem os versos do livro, a gente canta e sente toda a história de outras pessoas. Escrevê-los foi difícil?
PAOLA – Tenho facilidade para isso. Fui escrever e me lembrei do repente. Na fazenda do meu avô, tinha a cantiga de pé de parede, o violeiro chegava e a gente se sentava tudo no pé da parede para ouvir. Essa linguagem é muito fácil para mim. Quando eu fui fechar o livro, já estava morrendo de saudade do Sertão. A fotografia da contracapa eu vi e disse que um dia eu volto para casa. Minhas cinzas eu quero que sejam jogadas aqui, quero ser misturada nessa terra vermelha do sertão da caatinga.
OP – Como o câncer acontece no sertão?
PAOLA – As pessoas toleram o tratamento quimioterápico de forma diferente, porque elas sentem a necessidade de trabalhar mesmo doentes. A forma de encarar a doença, a fé, a aceitação é muito maior por parte do sertanejo. O sertanejo é resignado, é resiliente. A seca dá resiliência. E ele se cura muito mais fácil do que as pessoas da cidade. Não é brincadeira não. A Maria Rodrigues vendeu a vaca que tinha para vir se curar em Fortaleza. Ela nunca tinha saído da Lagoa do Jatobá. O marido a deixava de moto na cidade mais próxima para pegar um ônibus, os meninos ficavam com a vizinha. O sertão, a seca e a adversidade dão chão para as pessoas enfrentarem qualquer coisa.
Por LEôNIA MARINA AZEVEDO DE OLIVEIRA
Sou Psicológa e atuamente tenho vivenciado muitos dos aspectos referidos no texto, na vivencia enquanto residente multiprofissional em saúde do adulto e idoso num hospital escola em Maceió-AL. Ao me deparar com o título do post, muitas reflexões surgiram em torno de como a alteridade ainda se constitui um desafio não somente para o profissional médico, mas também para os demais profissionais produtores do cuidado em saúde. A alteridade, antes de qualquer coisa acaba por ser um enigma sobre o qual deveremos nos debruçar se quisermos compreende-lo. E desta forma, torna-se caminho mais fácil desviar deste enigma e atentar para aquilo que detemos conhecimento, as doenças. E assim, a alteridade esquecida dá lugar à rótulos, e o paciente despersonalizado nada mais é que o leito 311, a cirurgia de vesícula. Desta forma, para se pensar em um cuidado que compreenda o paciente para além da doença, em sua totalidade, em sua singularidade, requer a superação de diversos desafios presentes no cotidiano do fazer saúde, um dos quais, porque não dizer, um dos mais cruciais, a formação. É preciso, e isso há muito se discute, romper paradigmas que se perpetuam por gerações e gerações de profissionais da saúde desde a academia. Para além de um médico que saiba prescrever a medicação correta, precisamos de médicos que saibam para além de ouvir, escutar. Escutar sentimentos, angústias, alegrias, as demandas e necessidades singulares trazidas pelo outro, que dialogue ao invés de impor verdades dadas como imutáveis, que possa se reconhecer no outro, afetar e ser afetado, receber e dar afeto, que reconheça o poder da palavra tal qual reconhece o poder do medicamento, enfim, que seja humano antes de esconder-se por trás de qualquer titulação.