A rede Humanizasus também quer homenagear o guerreiro de luz Antonio. E, bem ao seu gosto, chamamos um povo para compor depoimentos sobre a sua generosidade, coragem e falta total de papas na língua.
Chamamos todos para deixarem uma palavra, um relato de encontro, um dia de trabalho ao lado dele, impressões de seu modo de formar companheiros com tônus erótico pelo trabalho, enfim, como ele mesmo dizia, de como fazer para não nos separarmos daquilo que podemos…
Venham todos!
“Ontem enterramos o corpo de meu querido pai, Antonio Lancetti, “mi viejo”. Filho de Don Benedicto e Doña Quica, desde cedo aprendeu o que era a luta de classes por ser filho de um zelador de um prédio de ricos num bairro de ricos em Buenos Aires. Algumas vezes foi a nocaute devido aos socos de meu avô, mas em outras conseguiu correr pelas escadas sem ser alcançado, conquistando a rua. Ainda criança enfrentou o pai com uma faca para que ele não batesse na minha avó.
Aquele prédio tinha duas portarias. Do apartamento, dava pra ver o apartamento do outro zelador, amigo do meu avô. Os apartamentos eram separados por um grande fosso interno, e duas colunas horizontais, em meio ao precipício, ligavam os apartamentos. Meu pai enfrentava esse vão como um equilibrista para ir de um apartamento ao outro sem ter que fazer o caminho normal.
Me lembro do meu pai andando rápido, eu ficava pra trás nas ruas de Buenos Aires e me perdia na multidão. Mas sempre alguma moça solícita me ajudava a reencontrá-lo perguntando se eu estava perdido. Esse homem, sempre tão apressado, também tinha paciência para me levar nos carrinhos de bate-bate do extinto “Italpark”, nos shows de “Pipo Pescador” e no planetário. Desde que eu era bebê, ele me levava na sua faculdade de psicologia e nas assembléias. Ele me disse que eu gostava de brincar distribuindo panfletos quando já tinha meus 3 ou 4 anos.
O exílio do meu pai por causa da truculenta ditadura argentina acabou me trazendo ao Brasil. Um de seus companheiros, que morou com ele, caiu, o que o teria obrigado a sair imediatamente da Argentina. No entanto, ele demorou demais, vendeu apartamento e carro. O companheiro foi assassinado sob tortura sem entregá-lo.
Aqui no Brasil, eu pude conviver cotidianamente com esse homem, sua intensa militância em favor dos pobres e dos que ficaram à margem, uma pessoa que sabia entrar em fluxos de tempo que eram verdadeiros atalhos e provocavam mudanças muito rápidas, verdadeiros saltos no tempo. Meu pai era um e, em uma semana, outro. Um homem que não aceitava a realidade, ele criava realidade. Mudava a si mesmo e mudava o entorno, mudava o mundo. Conceitos Deleuzianos como “rizoma”, por exemplo, eu os aprendi antes de estudá-los por haver convivido com esse Deleuziano.
Esse homem me formou homem. E agora espero um filho, seu neto: Tomás Lancetti, que formarei como homem. Neto que ele não pôde conhecer mas pelo menos soube que estava a caminho e que chutou sua mão desde a barriga. A linda cerimônia de enterro do meu pai deixa para trás qualquer paixão triste e cristaliza o que há de afirmativo em sua existência. Esse legado que meu pai deixa irá influenciar o meu filho, que saberá a seu modo tirar proveito dessa “memória de futuro”, como disse Luiz Fuganti. Livros, filmes guardam conhecimentos que o afetarão. Pessoas que conviveram com meu pai e que irão amá-lo.
Fique tranquilo, meu pai querido, seu neto será criado com respeito, com imenso carinho e amor num lindo rito de passagem. Será feito de tempo e de fluxos de tempo e viverá como matéria por um tempo e saberá que o tempo tem outras dimensões que ultrapassam a linearidade do presente, passado e futuro, como eu aprendi com você num livro sobre Bergson que você me indicou. Matias Lancetti
“Morreu hoje Antonio Lancetti. Guerreiros luminosos como ele, tão imprescindíveis quanto raros, deixam com sua partida rastros de eternidade na própria eternidade do tempo. Em nós o efeito, a sensação de uma singular multiplicidade intensa transmutar-se como um sol em super-nova, a lançar memórias de outros futuros, luz e seiva que não cessarão de re-brotar para semear com o inédito o presente dos vivos! Para nós, aliados sensíveis à necessidade inventiva de novos modos de viver que nos tornam dignos do dom da vida, a bela e singular existência de Antonio Lancetti entrou no circuito não apenas daqueles incansáveis combatentes de uma saúde mental ativa e vital, para os quais se fez farol. Fez-se dádiva para os viventes que se movem na alegria do diverso e da vida intensa; para aqueles que combatem o ressentimento; para os que se re-inventam como condição e fonte de amor às diferenças; para os que cultivam a afirmação e a coexistência da pluralidade dos universos que afetam as n dimensões da vida e nos tornam mais imprescindíveis.” Luiz Fuganti
A primeira vez que o ouvi foi em Porto Alegre, creio que em 2004. Era um visionário evento organizado para discutir as aproximações entre as políticas de Aids e de Saúde Mental. Nunca esqueci que ele criticava a classificação da Atenção Básica como “baixa complexidade”. Para ele, nada mais complexo do que construir o cuidado no território, articulando múltiplos atores, como centros de religião, vizinhos e lideranças comunitárias. Nunca esqueci.
Depois, foi a leitura de “Clínica Peripatética”. Creio que foi, ao lado do Dilema Preventivista de Sérgio Arouca, o livro que mais me transformou, que mais me constituiu como trabalhador e militante da saúde. A entrevista com Domiciano Siqueira é um daqueles encontros de que Spinoza fala, no sentido de ampliar a potência de intervenção no mundo. Na vida.
Depois, veio o Caminhos do Cuidado. Discordamos algumas vezes, e era sempre maravilhoso exercitar a coragem da verdade com alguém tão inteiro, tão direto, tão generoso. Trabalhar com ele, mesmo que em raros momentos, era um aprendizado permanente. Nunca se sabia onde se ia parar, o que iria acontecer. Capoeira à dois, dividir uma oficina com alguém tão imprevisível, e tão inspirador de confiança.
Por fim, nosso último encontro, o momento mais maravilhoso de minha vida profissional, quando dividi uma mesa com ele e Antônio Nery. E eu ali, tão jovem, entre os dois Antônios, dois seres iluminados que contribuíram de modo decisivo para a construção de alternativas inovadoras e amorosas para o cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas, no Brasil.
Sempre achei a morte uma humilhação que a natureza nos impõe. Mas com Antônio, a morte é que foi humilhada. Foucault nos falou da vida como obra de arte. Antônio viveu assim, mas para ele, isso era pouco. Era preciso que a morte também fosse, ela mesma, uma obra de arte. Assim foi.
Obrigado por tudo, mestre. Os que virão depois de ti te saúdam. Dênis Petuco ( facebook )
vídeo da série “psicanalistas que falam”
Poema feito a partir do vídeo por Denis Petuco:
Frente
aos dentes rangendo
à fúria cega,
ao ódio que nega,
ao não.
à negação
da vida,
da arte,
do gozo.
Frente
à tristeza egoísta,
ao compromisso com a dor,
à autopiedade que renuncia à cidade.
Frente aos dentes (outros…)
Frente à tristeza (…)
Pano Linha
Ludo Rinha
Uma nova suavidade.
Prefácio de Peter Pál Pelbart em Clínica Peripatética de Antonio Lancetti
“…Da clínica praticada em movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais, com o que se inauguram outras formas de engate terapêutico, bem como outras possibilidades de conexão com os fluxos da cidade e da cultura. “Estar-presente-em-movimento”, “pôr as pessoas de pé”, desterritorializar o contexto e o setting, habitar o limite e a tensão, investir na força, eis uma reversão dos hábitos clínicos consagrados, com seus paradoxos e riscos…por conseguinte, é outra clínica que aí se insinua, cujos contornos mínimos estão aqui esboçados, centrada nos percursos, nas articulações com o fora, nas conexões, nos planos de consistência que se conquistam…e sobretudo; nos encontros possíveis”
Oscar Pablo Cachi Pilipiak Antonio Lancetti, fue el fundador de nuestra agrupación estudiantil en la UTN/FRA de Avellaneda en 1969, el MP11(Movimiento Programático 11 de Agosto) de izquierda revolucionaria y guevarista, mas tarde le perdonamos ese nombre tan feo que cambiamos por MP, Militancia Popular. Estuvo muy poco tiempo con nosotros y pronto se fue hacia combates más contundentes que terminamos por perder y como tantos otros tomó el camino del exilio,y fue en Brasil que brilló como un gran psicólogo y psicoanalista, transformándose en una gran figura de la salud mental de ese país, autor de libros muy importantes en ese dominio, nunca abandonó su militancia revolucionaria lo que le valió la amistad y la admiración de tanta gente en su país de adopción.
Compañero Lancetti me despido con la consigna de tu MP del 69 :¡HASTA LA VICTORIA SIEMPRE !!!
Em 87 eu o vi pela primeira vez, num encontro inesquecível de mentaleiros em Bauru. Trazia usuários de serviços de Saúde Mental de São Paulo e com eles encarnava o germe da Luta Antimanicomial. Apaixonado, sensível, solidário e inconformado.
Era 9 de novembro de 1989. Lancetti veio a Campinas para uma capacitação dos profissionais de Saúde Mental do SUS, quando chegou a notícia da queda do muro de Berlim. Com seu olhar atento, desconfiava que esse marco não seria de convivência entre as diferenças, mas uma nova imposição de um pensamento único.
Ajudou a perceber a nós mesmos incluídos nas relações terapêuticas, e não como meros observadores da miséria humana.
Nunca mais fomos os mesmos. Para sempre, Lancetti.
Prestamos aqui uma singela homenagem ao psicanalista Antônio Lancetti que nos deixou na última quarta-feira, 14, vitimado pelo câncer. Um homem que deixa de legado toda sua generosidade na luta contra a violência cometida àqueles que foram aprisionados nos manicômios; vivendo todo tipo de desrespeito, abusos e sofrimentos.
Lancetti dedicou sua vida aos que sofrem de aprisionamentos, discriminações, marginalizações e torturas psíquicas. Destruiu os manicômios de Santos juntamente com Davi Capistrano e participou de políticas nacionais de saúde mental. Acreditava que a política é inerente e fundamental à vida das pessoas na luta pelos direitos humanos.
Foi ele o idealizador e consultor do programa De Braços Abertos, criado na atual gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo, para recuperar usuários de crack, por meio de ações integradas entre direitos humanos, saúde e trabalho, sob a ótica de redução de danos e com oferta de trabalho e moradia. Nos últimos meses, ele vinha participando dos atos em defesa do programa, que corre o risco de ser extinto pelo prefeito eleito João Dória Jr..
O ex-presidente Lula também se manifestou em defesa da memória do psicanalista: “O seu trabalho sempre esteve associado ao que houve de mais avançado em iniciativas de saúde mental. Liderou junto com o saudoso Davi Capistrano a iniciativa revolucionária que acabou com os manicômios em Santos, atuou em políticas nacionais e também em São Paulo para tratamento dos viciados em crack. Dedicou sua vida a compreender e ajudar alguns dos segmentos mais discriminados da nossa sociedade. Um exemplo de generosidade e atuação pela missão pública da saúde não só para a classe médica como para todos os brasileiros”.
Fica registrado aqui, como psicóloga clínica que sou, o nosso agradecimento e reconhecimento pela dignidade de sua vida na luta pelas liberdades.
As imagens dos que conseguiram sobreviver ao horror dos manicômios e se reintegrarem na sociedade, no caso específico os da Colônia de Barbacena, são o melhor exemplo de que a luta de Lancetti não foi vã.
As imagens são registros da Mostra Fotográfica “Saúde Mental: Novo Cenário, Novas Imagens””, realizada em 2009, que retrata o cotidiano de ex-internos do grande manicômio que existiu em Barbacena-MG em suas novas casas e residências terapêuticas que foram proporcionadas pelo benefício de desinstitucionalização proveniente do Programa De Volta Para Casa, do Ministério da Saúde, criado no governo Lula. Fora da indiferença do hospício que foi nomeado pela jornalista Daniela Arbex de “Holocausto Brasileiro” em seu livro premiado estas pessoas puderam viver a cidadania que existe nas pequenas coisas que vai de desde ter a chave de sua casa até fazer café.
Perdemos mais um grande cidadão, um grande companheiro, que contribuiu muito para um país mais humano e mais justo: o médico Antonio Lancetti. Argentino de nascimento, adotou o Brasil e contribuiu muito na luta anti-manicomial no nosso país, por um tratamento mais humano e como questão de saúde pública para os viciados em drogas.
O seu trabalho sempre esteve associado ao que houve de mais avançado em iniciativas de saúde mental. Liderou junto com o saudoso Davi Capistrano a iniciativa revolucionária que acabou com os manicômios em Santos, atuou em políticas nacionais e também em São Paulo para tratamento dos viciados em crack. Dedicou sua vida a compreender e ajudar alguns dos segmentos mais discriminados da nossa sociedade. Um exemplo de generosidade e atuação pela missão pública da saúde não só para a classe médica como para todos os brasileiros.
Nesse momento de tristeza, dor e saudade, minha solidariedade a todos os parentes, familiares, amigos e alunos de Antonio Lancetti. Luiz Inácio Lula da Slva
Por Renato Abreu
Queria postar uma foto de um pequeno “quadro” que ficava no chão, na antessala do consultório dele ali na rua Tupi.
A foto está aqui: https://drive.google.com/file/d/10KExPJQ90_B8A0QbukygtoG7fzW73a2_/view?usp=sharing
Sinto muito falta do Lancetti. Falta enorme ele faz.