Quem trabalha ou se interessa pela temática da produção de subjetividade no contemporâneo, mais especificamente, no Brasil de 2017, vai encontrar dados muito instigantes na pesquisa recém saída do forno da Fundação Perseu Abramo: “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa em que, com categorias originais, nos aproximamos de uma construção analítica passível de nos surpreender imensamente.
Intuíamos, mas não ainda corroborávamos com a riqueza de detalhes oferecida pela recente colheita de dados deste estudo, a consolidação dos valores neo-liberais e a mutação ideológico-subjetiva em curso no imaginário social da periferia de SP.
Vejam as conclusões do estudo (https://novo.fpabramo.org.br/content/percep%C3%A7%C3%B5es-na-periferia-de-s%C3%A3o-paulo):
” No imaginário da população não há luta de classes; o ‘inimigo’ é, em grande medida, o próprio Estado ineficaz e incompetente, abre-se espaço para o ‘liberalismo popular’ com demanda de menos Estado.
A dimensão da vida pública é muito rarefeita e quase sempre a noção de “público” é tratada como sinônimo daquilo que é “de graça”. Nesse sentido, a própria relação com a esfera pública está mediada por interpretações mercantis.
Em muitos casos, a visão de mundo é formada se espelhando não entre aqueles que pertencem ao mesmo grupo, mas entre aqueles que pertencem ao grupo onde esses indivíduos almejam chegar, é fundamental observar os desejos e as expectativas futuras dessas pessoas.
A ascensão social está relacionada à coragem, ousadia e disciplina e é tratada como
um resultado individual derivado da força de vontade. Muitas vezes isso significa
estabelecer um sentimento de solidariedade mais estreito com os próprios empregadores do que com aqueles que partilham a mesma condição de classe. Nesse sentido, a resiliência, mais do que a resistência é um valor positivo.
A lógica mercantil está presente mesmo na interpretação dos direitos trabalhistas e
benefícios sociais. As pessoas confiam mais nos programas que ofertam imediatamente recursos financeiros (Bolsa Família/Passe Livre) do que nas leis que orientam direitos.
Há uma busca por identificação com histórias de superação e sucesso, é nessa medida
que figuras tão díspares como Lula, Silvio Santos e João Dória Jr. aparecem
como exemplos. Em muitas circunstâncias a figura de Lula é admirada menos pelas
políticas que o governo dele implementou, ainda que essa seja uma dimensão importante, e mais porque ele próprio é um bom exemplo de ascensão social.
Na trajetória e no desejo de ascensão os “estudos” e não necessariamente a educação aparece como um elemento fundamental; de forma análoga a igreja aparece menos na sua dimensão teológica e mais como instituição de apoio para minimizar ou evitar o risco de seguir pelo caminho errado da desocupação e da criminalidade.
Voto religioso não é, estritamente, um voto conservador. Os valores religiosos neo- -petencostais podem se relacionar com elementos fundamentais organizativos da vida do trabalhador (meritocracia, teologia da prosperidade, etc), mas não são determinantes. Apresentam-se mais como identidade eletiva.
O “sucesso” neopetencostal se daria mais por questões organizacionais, seu papel acolhedor e de sociabilidade na comunidade do que por questões de conteúdo ideológico. Política também é vínculo, acolhimento e identidade – as igrejas nas periferias proporcionam isso.
Atenção para o discurso que nega o ‘mérito’ →ele é importante na construção da identidade.
A dimensão da vida privada é central para a constituição da subjetividade do indivíduo. O campo democrático-popular precisa produzir narrativas contra-hegemônicas mais consistentes e menos maniqueístas ou pejorativas sobre as noções de indivíduo, família, religião e segurança.
Novas pesquisas: investigar mais o papel da religião e explorar mais a diferença sobre elas.
Este cenário de descrédito da política, compreensão do Estado como máquina ineficaz
somada à valorização da lógica de mercado e a ideologia do mérito abrem espaços para candidatos e projetos como o do João Dória ‘um não político, gestor trabalhador que ascendeu e, por isso, não vai roubar’
MAS… entrevistados seguem acreditando em saídas democráticas, falam em fortalecimento dos processos de transparência e participação. No processo de formação de opinião, as condições materiais de vida e do cotidiano são preponderantes”.
Por Emilia Alves de Sousa
Sou uma apaixonada pelas pesquisas, pela possibilidade de mostrarem dados interessantes, como esta trazida por você Cleusa.
Quem poderia imaginar que uma metrópole como São Paulo tivesse uma periferia com a maioria das pessoas com um imaginário ainda marcado pelo individualismo, pela lógica mercantil, pela valorização da meritocracia…? Onde está a falha? O que está sendo feito para as pessoas mudarem esse imaginário?
Outro dado chama a atenção, a descrença e a desvalorização da coisa pública. As pessoas até defendem o público, mas se pudesse colocaria seu filho numa escola particular e teria um plano de saúde privado. Um indicativo de que a coisa pública não está boa e precisa mudar.
E tenho que concordar com você, quando diz: “Este cenário de descrédito da política, compreensão do Estado como máquina ineficaz somada à valorização da lógica de mercado e a ideologia do mérito abrem espaços para candidatos e projetos como o do João Dória ‘um não político, gestor trabalhador que ascendeu e, por isso, não vai roubar”
Obrigada pelo compartilhamento da pesquisa!
Emília