A experiência cinematográfica: movimento para reflexão no debate sobre saúde e sociedade
Esta é uma atividade da disciplina SUS, da professora Cátia, do Programa de Residência Multiprofissional do HU de Dourados -MS.
Pretendo dar vazão aqui a reflexões sobre saúde, cuidado e educação em saúde, a partir de um prazer que muito me motiva e inspira, que são os filmes, desencadeadores do exercício de empatia e alteridade. A partir da experiência cinematográfica, sinto que tenho contato com cosmologias, realidades singulares e críticas ao estado amorfo que as pessoas se encontram enquanto inseridas numa sociedade do descarte, da liquidez, onde as relações são passageiras e o consumismo é supervalorizado. Dou espaço aqui para minhas percepções e entrelaçamentos de ideias advindas dos filmes Estamira e Sicko.
Enquanto residente, profissional de saúde e eterna estudante, sempre me esforço em repensar minha atuação como profissional, considerando concepções de cidadania, ética, política e território.
Há uma tensão constante nos dois filmes citados, que acidamente se relaciona com as vivências no hospital onde trabalho, tal tensão remete aos embates entre saber e poder, onde as práticas médicas e de saúde se voltam para a regularização da vida, a serviço de uma biopolítica. O normal e o patológico nem se discutem mais, visto que há uma oficialização baseada em fundamentos da biomedicina.
Sicko fala de saúde pública, mais especificamente da não existência de um sistema de saúde universal e gratuito nos Estados Unidos, é um documentário que mostra cruamente como o sistema de saúde norte-americano cria um habitat propício à disseminação dos planos de saúde, a saúde como comércio, visando o lucro do próprio governo. A partir da narrativa rápida e inteligente, repleta de ironias, comecei a questionar: mas afinal, um país pode ser considerado desenvolvido se a população não tem acesso a um sistema de saúde decente? Enquanto a população do país vive precariamente, com medo de adoecer, pois há um valor para o corpo, para cada parte dele, acreditam que vivem numa nação livre e democrática. Vivemos num cenário quantificador, onde o corpo é mercadoria. Por traz dessa concepção de saúde envolvendo questões financeiras, há uma lógica neoliberal, que passa por cima do direito constitucional da população estadunidense.
Ao comparar o sistema de saúde dos EUA com outros países como Canadá, Reino Unido, França e Cuba, é possível perceber o quanto a saúde está atrelada a um ciclo que envolve o manejo da saúde, ao se gerar saúde, prevenção e cuidados, pensa-se na longevidade da população, em qualidade de vida, logo, menos adoecimento. Outro ponto importante que o documentário levanta, é a relação entre governo e população; enquanto que a democracia é um revolução, em que o cidadão compreende o papel do governo e a sua importância no processo democrático, de construção da sociedade, percebe-se o contraste dessa percepção, para a realidade dos EUA, onde a população permanece desmoralizada e assustada, vive-se o medo do governo, com cidadãos na sarjeta, sem acesso nenhum à saúde. O Sistema de saúde é uma estrutura, que conta com diversas partes, incluindo os profissionais que o compõem, no filme, há a denúncia de uma médica que conseguiu perceber a falta de ética e a deturpação de sua função como profissional, enquanto trabalhou para um plano de saúde.
Estamira faz uma abordagem do período em que vivemos, a pós-modernidade, com seu consumismo a qualquer custo, o capitalismo brutal que passa por cima da dignidade humana. É um filme com discurso alocado em um contexto histórico, que faz análise e crítica ao sistema capitalista no qual vivemos. Estamira é considerada a “louca do lixão”, por sua fala sincera, sempre denunciando o que pensa, fazendo críticas contundentes do cotidiano que vivencia, é possível, a partir desse ponto, fazer uma correlação ao pensamento de Foucault, no livro A história da Loucura, em que o louco surge como a pessoa que profere o discurso radical, indo contra a corrente do normal, que verbaliza as contradições e dá a localização das contradições.
Nesse universo de normal e anormal, de louco e são, de rico e pobre, percebo a ambiguidade contida no sistema vigente, são segmentações que definem lados. Na engrenagem consumista existem opostos, que Estamira bem apresenta como os que consomem as embalagens que vão parar no lixo e aqueles que separam e reaproveitam os dejetos, o outro lado é de um montante de pessoas sem nome, que não são reconhecidos pelo que fazem, e que realizam o “serviço sujo”. E assim vivemos uma ditadura que encarcera e pune aqueles considerados inferiores, mazelas da sociedade, em que se tenta conter distúrbios humanos, pois existem categorias socioeconômicas, e há uma forma invisível, porém legitimada, de estigmatizar pobres, negros e outras minorias. Em contraposição a essa ideologia, há um discurso que identifica desumanidades, faz crítica a elas, e que dá força à luta de classes. Estamira denuncia e dá novo sentido ao lixo, ao que foi descartado, estabelece uma rede de sentidos em uma lógica nova a própria a ela.
Estamira desperta em mim o mal-estar de me sentir parte de uma sociedade injusta, porém, com possibilidades de construção de novos sentidos, de novas possibilidades, continuo a questionar: o que seria o bem viver? O que define um país avançado e desenvolvido? São questões motivadoras e políticas, que geram desconfortos e mudanças.
Por Emilia Alves de Sousa
Oi Jéssica, que jeito forte de chegar à rede, trazendo essas ricas discussões em torno de dois filmes emblemáticos. Sicko ainda não tive oportunidade de assistir, mas a partir dessa abordagem me interessei. Quanto a Estamira, já assisti alguns documentários sobre ela, e sempre me emociono com a sua história ambígua de lucidez e loucura ao mesmo tempo, história de uma mulher sofrida, de resistência à marginalidade e invisibilidade da sociedade, que só a reconheceu depois de morta. Viveu e morreu sem receber o cuidado que deveria ter, como cidadã, como louca. Ficou a lição!
Bela postagem! Valeu!
Emília