Homeopatia e preconceito: ausência de evidências científicas ou negação das existentes? – Jornal da USP*
Com assombro e preocupação tomamos conhecimento da recente matéria A homeopatia é uma farsa criminosa publicada pelo pesquisador Beny Spira no Jornal da USP, crítica mordaz e desrespeitosa à excelente reportagem Ensino de homeopatia veterinária é deficiente, afirma pesquisadora, em que a pesquisadora Clarice Vaz de Oliveira expõe de forma clara e objetiva as dificuldades encontradas pela homeopatia em ser aceita no âmbito acadêmico, para que possa desenvolver atividades de ensino, pesquisa e assistência. Incomodado pelas verdades citadas, talvez por ser partícipe dos impedimentos descritos, o crítico exagerou nos impropérios, extrapolando os limites do debate ético-científico.
Ao definir o exercício profissional da homeopatia como uma “farsa” ou um “crime”, Beny Spira comete delitos em diversas esferas. No campo penal, atribuindo o título de “farsantes” ou “criminosos” aos milhares de médicos, médicos-veterinários, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos homeopatas, que obtiveram títulos de especialistas junto aos respectivos Conselhos de Classe (CFM, CFMV, CFO e CFF), comete “calúnia”, “difamação” e “injúria” contra esses profissionais, “Crimes Contra a Honra” enquadrados, respectivamente, nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, afetando a imagem, a reputação e a dignidade dos mesmos perante a sociedade.
No campo ético-profissional, caso faça parte de alguma dessas classes profissionais (curiosamente, omite sua formação acadêmica em seu Currículo Lattes), estará infringindo grave delito perante seus pares. Perante o Código de Ética da USP e seus colegas pesquisadores homeopatas, desrespeita os artigos 4º, 5º e 7º “Dos Princípios Comuns”, ferindo “o direito à liberdade de expressão dentro de normas de civilidade e sem quaisquer formas de desrespeito” e divulgando “informações de maneira sensacionalista, promocional ou inverídica”, dentre outros.
Em vista dos projetos de ensino e pesquisa homeopática que vimos desenvolvendo junto à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) desde 2002, temos colaborado na elaboração de várias matérias esclarecedoras sobre a episteme ou racionalidade científica homeopática publicadas no Jornal da USP (1, 2, 3, 4, 5), na Agência USP de Notícias (6, 7), na Rádio USP (8) e na Revista Espaço Aberto (9, 10). Nessa última (2012), em debate com o referido pesquisador, citamos inúmeras evidências científicas em resposta às suas provocações, as quais, infelizmente, parecem ter sido ignoradas e negadas pelo mesmo, pois ele repete os mesmos argumentos falaciosos à época. Tal postura, além de configurar os delitos anteriormente citados, demonstra a máxima do filósofo William Hazlitt: “o preconceito é filho da ignorância”.
Dentre as atividades realizadas junto à FMUSP, além da elaboração de estudos relacionados à educação médica em terapêuticas não convencionais (11, 12, 13, 14, 15), coordenamos a disciplina optativa Fundamentos da Homeopatia e desenvolvemos projetos de pesquisa clínica em homeopatia (Tese de Doutorado e Tese de Pós-Doutorado), tendo como orientadores Professores Titulares isentos de preconceitos, que nos permitem expor, discutir e confirmar as premissas do modelo homeopático através de aulas, cursos, estudos e pesquisas científicas.
A título de esclarecimento geral, o modelo científico homeopático está embasado em quatro pressupostos: (i) princípio de cura pela semelhança (similitude terapêutica), (ii) experimentação de medicamentos em indivíduos sadios (ensaios patogenéticos homeopáticos), (iii) prescrição de medicamentos individualizados e (iv) uso de medicamentos dinamizados (ultradiluídos). Embora se atribua grande importância ao medicamento dinamizado, as duas primeiras premissas são os alicerces da episteme homeopática, restando ao medicamento individualizado (escolhido segundo a totalidade de sinais e sintomas característicos) a condição inerente para que a reação terapêutica do organismo venha a ocorrer (16).
Mostrando que esses pressupostos não são “arcaicos”, como afirma o pesquisador, o princípio da similitude terapêutica (similia similibus curentur) está fundamentado cientificamente no estudo do efeito rebote dos fármacos modernos, linha de pesquisa que vimos desenvolvendo nas últimas décadas, com centenas de evidências e diversas publicações (17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29). Segundo essas pesquisas, a reação secundária do organismo, utilizada de forma curativa quando aplicamos a similitude terapêutica, é descrita pela farmacologia moderna como efeito rebote ou reação paradoxal do organismo, sendo observada após a descontinuação de inúmeras classes de fármacos, agravando os sintomas da doença a níveis superiores aos anteriores do tratamento, podendo causar, inclusive, iatrogenias graves e fatais. Como é que o pesquisador afirma que ele “carece de evidências científicas”?
Ampliando essa linha de pesquisa e contribuindo ao “progresso da ciência homeopática”, desde 2003, vimos propondo usar os fármacos modernos segundo o princípio da similitude terapêutica (www.newhomeopathicmedicines.com), empregando medicamentos que causam determinados sintomas, como eventos adversos, para tratar indivíduos doentes com os mesmos transtornos. Agregando diversas publicações científicas que embasam essa proposta (30, 31, 32, 33, 34), aplicamos essa metodologia em nossa Tese de Pós-Doutorado, utilizando o estrogênio (17-beta estradiol) dinamizado para tratar a dor pélvica crônica de pacientes portadoras de endometriose, em vista de o estrogênio causar proliferação endometrial como evento adverso e a endometriose ser uma síndrome estrogênio-dependente. Com resultados bastante animadores (35, 36), essa proposta pode ser utilizada no tratamento de uma infinidade de doenças modernas (34), reiterando a universalidade do princípio da similitude terapêutica (“lei ou princípio natural”), independentemente do tipo de substância utilizada (natural ou sintética) ou da dose empregada (ponderal ou infinitesimal), como no caso do trióxido de arsênico, citado pelo pesquisador. Ausência de evidências científicas ou negação das existentes?
Quanto aos medicamentos homeopáticos dinamizados (ultradiluídos), desacreditados em seu poder de ação pela concepção farmacológica dose-dependente, inúmeros experimentos em pesquisa básica utilizando modelos físico-químicos (40) e biológicos (41, 42, 43, 44) evidenciam que a “informação” dessas doses infinitesimais provoca os mesmos efeitos que a substância de origem, ou desperta a reação terapêutica quando aplicada a similitude terapêutica. O fato de esses efeitos serem observados em células, plantas e animais descarta a falsa hipótese de que o “efeito-placebo” é a única explicação plausível para a ocorrência do fenômeno homeopático. Ausência de evidências científicas ou negação das existentes?
Como citado anteriormente, a individualização do medicamento homeopático perante a totalidade de sintomas característicos do doente é uma condição inerente para que a resposta curativa do organismo seja despertada, exigindo-se consultas periódicas no ajuste do medicamento perante o binômio doente-doença. Em vista disso, os modelos de pesquisa em homeopatia devem respeitar a individualização medicamentosa, disponibilizando um tempo maior de acompanhamento. Ensaios clínicos que desprezaram essa premissa epistemológica não apresentaram eficácia clínica perante o placebo.
Dentre outras falhas metodológicas, a seleção de ensaios clínicos que desrespeitaram a individualização medicamentosa foi importante viés na segunda análise da metanálise publicada no Lancet em 2005 e no relatório do governo australiano, estudos citados pelo pesquisador como norteadores para a (falsa) conclusão de que “o tratamento homeopático equivale ao tratamento com placebo”.
Como fizemos na endometriose (36), ensaios clínicos placebos-controlados (e respectivas metanálises) demonstram a eficácia do tratamento homeopático perante o placebo em diversas classes de doenças (infecções do trato respiratório superior, diarréia, otite média aguda, síndrome pré-menstrual, fibromialgia, síndrome da fadiga crônica, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, dentre outras) (45, 46, 47, 48, 49, 50), apesar das dificuldades metodológicas encontradas na elaboração dos mesmos, para que respeitem a episteme homeopática. Ausência de evidências científicas ou negação das existentes?
Todos os pesquisadores que criticam o modelo científico homeopático por preconceito ou opinião dogmática, ignorando e desprezando suas evidências de forma sistemática, se afastam da “busca pela verdade” que tanto propagam, agindo como verdadeiros pseudocientistas. Como já disse no passado, “o orgulho científico entorpece a mente dos pesquisadores, fazendo-os desprezar aquilo que desconhecem”.
Artigo publicado originalmente no Jornal da USP (22/05/2017)
Por Sérgio Aragaki
Marcus:
Muito importante e formativo seu post.
A luta contra a hegemonia da racionalidade biomédica é árdua, mas ela mesma tem mostrado a sua insuficiência e a necessidade de entendermos e lidarmos com a complexidade que é o ser humano para além do corpo biológico, daquilo que é visível, mensurável, controlável (supostamente).