A Cracolândia não é um espaço geográfico, é uma concentração de pessoas em situação de rua, nem sempre viciadas em crack, pois muitas são alcoolistas. Excluídas de todos os espaços, reúnem-se, protegem-se e consomem-se em adoecimentos.
O Programa “De Braços Abertos“, iniciado em 2014 pela Prefeitura de São Paulo e extinto nesse domingo, 21/05/17, tinha uma ideia audaciosa e complexa em pensar o problema da dependência química a partir da estratégia de Redução de Danos e de políticas intersetoriais: além da saúde, participavam do projeto a secretaria de assistência, de direitos humanos, da habitação e da segurança pública. As pessoas que, VOLUNTARIAMENTE, quisessem participar do Programa, recebiam ajuda financeira se estivessem em algum tipo de trabalho – o primeiro foi o de gari –, acesso aos chamados hotéis, moradias no entorno, semelhantes às pensões e cuidados em CAPS AD, internações voluntárias ou quaisquer estratégias de cuidado construídas entre a equipe de saúde e o usuário.
Exterminar a Cracolândia é algo humanamente impossível por vários aspectos:
– Não é um “lugar”, é um modo de viver, de povoar. Um lugar é “limpo” e as pessoas que saíram de lá se deslocam para outro lugar.
– Na medida em que a Cracolândia é feita de pessoas, a ideia é o extermínio de pessoas. Sendo proibido abrir fogo contra elas, usa-se de estratégias higienistas para que elas deixem de existir. Então elas são presas por estarem com drogas – e aí enquadram-se como traficantes e não como usuárias porque a nossa legislação não define uma quantidade que separe um tipo e outro –, internadas involuntariamente (medida ineficaz na maioria das vezes, mas que existe como último recurso da saúde, jamais como o primeiro), desaparecem pura e simplesmente (como as 150 crianças e mulheres da região, desde o último domingo), morrem de infecção pela impossibilidade de continuidade dos cuidados que recebiam das equipes do Consultório na Rua, em decorrência dos ferimentos das balas de borracha, vítimas de atropelamento, suicídio, por espancamento..
Limpar a região da Luz faz parte de um projeto de reurbanização chamado Nova Luz, que é a construção de um complexo empresarial/imobiliário que indica um outro grave processo chamado de gentrificação: saída das pessoas que vivem numa determinada região porque a iniciativa privada resolve “investir” nesse lugar, tornando-o inviável para morar e empurrando as pessoas para lugares mais afastados, sem transporte, lazer, com comércio precário e maior violência.
As fotos do “antes e depois” da ação na Cracolândia não mostram que a demolição de imóvel tombado – que foi destruído por um incêndio de causas desconhecidas no final do ano passado e que era um dos hotéis onde os usuários do “De Braços Abertos” ficavam – feriu 3 pessoas pois o local não havia sido evacuado, que comerciantes da região tiveram seus bares e pensões lacrados e que não têm outra fonte de renda, que as casas foram muradas com documentos pessoais, roupas, demais pertences (brinquedos, remédios, móveis, exames) e animais de estimação porque eles foram proibidos de entrar pela última vez em suas casas e que não existe lugar para abrigar toda essa gente. Porque não há lugar mesmo, porque não foi feito nenhum cadastro dessas pessoas, porque a polícia gritava “vaza!” e elas vazaram, pra onde não se sabe, e porque tem gente que não quer ser abrigada. Essa condição, apesar de aparentemente sem sentido, indica algo tão sutil que às vezes nos escapa: o direito de uma pessoa conduzir a própria vida. Pra nossa angústia, pra nosso desconforto e até pra nossa indignação, eles podem querer a rua no lugar do albergue. Albergues não aceitam animais, não aceitam parceiros do mesmo sexo, tem histórico de violência e roubo entre eles, enfim, pode ser pior do que a rua.
Desde ontem, o poder judiciário de São Paulo autorizou qualquer pessoa que estiver em situação de “drogadição” a ser internada involuntariamente, após busca e apreensão acompanhada pela Guarda Civil Metropolitana. Num doloroso dejá-vù da ditadura militar, onde pessoas eram presas sob as acusações mais difusas, não existe uma definição da situação de drogadição: o surto psicótico, a situação de embriaguez, as discussões violentas, todas podem parecer “situação de drogadição”. Mas sabemos que gente suja, mal vestida, pedindo dinheiro, dormindo na rua, andando a ermo, serão as escolhidas.
Em nenhum momento se discute o quanto o tráfico de drogas é negócio altamente rentável, infiltrado nos setores mais insuspeitos da sociedade e que o bandido perigoso não é o miserável em situação de rua. Que o cerne da questão não é a “guerra às drogas”.
Não podemos nos deixar enganar. Uma política que exclui é uma política que nos exclui.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Harete,
Em um grupo de mães que fiz nesta semana, ouvi uma estória que nos toca e dá a medida da beleza de sentimentos de uma criança. A mãe conta que assistia às notícias na TV, com aquelas cenas de cortar o coração de quem ainda o tem, junto com o filho de 10 anos. Aproveitou a pergunta do filho sobre o que estava acontecendo com aquelas pessoas expulsas do lugar para dizer-lhe o quanto as drogas fazem mal. O garoto ouve e diz: “mas essas pessoas não estão doentes? por que estão mandando elas embora?”
Crianças são pura potência de afetar e ser afetadas.
bjs