Sobre a Morte e o Morrer
Um dia no início dos anos 60, uma médica e pesquisadora norte-americana que trabalhava num grande hospital foi procurada por estudantes que queriam estudar as “crises da vida humana” e que tinham escolhido por tema a morte. Ela então pensou que o óbvio seria conversar diretamente com as pessoas que estivessem passando pela experiência de morrer, aqueles declarados como moribundos. Eles, mais do que ninguém, saberiam dizer o que acontece com quem está morrendo, poderiam falar dos seus medos, desejos e necessidades e, o mais importante, a opinião sobre o que faziam com eles.
O que logo chamou a atenção na pesquisa foi perceber que num hospital com mais de 600 leitos não existia "ninguém" moribundo. Quando médicos e enfermeiras eram interrogados sobre pacientes que poderiam fazer parte da pesquisa, a resposta obtida era: "não existe ninguém morrendo em nosso setor".
Com o tempo, a pesquisadora percebeu que o simples fato de perguntar sobre isso despertava a agressividade dos trabalhadores, a ponto de uma enfermeira lhe perguntar: "Qual o prazer que você tem de se colocar no lugar de Deus?", Outra questionou: "De que serve dizer a um rapaz de 20 anos que ele só tem uma semana de vida?" Sistematicamente portas se fecharam, vozes se calaram. De posse das informações dos prontuários, ela não se deu por vencida. Foi em busca dos pacientes em estado mais grave. Começou gentilmente a abordar as pessoas sobre o assunto.
E qual não foi a surpresa ao perceber que boa parte das pessoas se sujeitava a fazer parte da pesquisa. Davam entrevistas na frente de estudantes, falavam abertamente sobre suas vidas. Estavam com tudo meio que entalado pois poucas pessoas ou ninguém queria conversar com elas sobre o que estava acontecendo.
O nome desta pesquisadora era Dra Elizabeth Kubler-Ross, famosa na literatura por ter descrito os estágios do morrer. Sempre enfatizou em seus trabalhos que é muito comum encontrar resistência nas equipes quando vai em busca de seus pacientes. Um dia encontrou um senhor muito idoso, muito vulnerável, caminhando em passos trôpegos pela enfermaria enquanto lia um artigo no jornal intitulado “Os Velhos Soldados não Morrem Jamais”. Perguntou-lhe se ele não tinha medo de ler o artigo ao que ele respondeu: “A senhora seria um dos médicos que não falam no assunto, mesmo sabendo que nada mais resta a fazer?”
Kubler-Ross
O trabalho de Elizabeth Kubler-Ross vai muito além da mera descrição de estágios frente a morte. Ela mesma enfatizava que sua noção de "estágio" deveria ser compreendida mais qualitativamente para não ´passar a falsa compreensão de que todas as pessoas passam por todos os estágios de maneira cartesiana e sistemática. Seu trabalho pioneiro encontrado em "Sobre a Morte e o Morrer" e muitos outros depois deste, é um convite a escuta daqueles que sofrem de uma forma mais ou menos sutil de segregação nos hospitais hoje em dia.
Basta que alguém seja declarado enfermo e, posteriormente, como moribundo, assistiremos a sua perda de liberdade e autonomia. Kubler-Hoss nos alertou que essas pessoas estão diante de nós e, o mais importante, não deixaram de ser pessoas. Grande parte do seu sofrimento emocional diante da morte e do morrer deriva nem tanto da percepção da morte em si, mas de sentirem-se literalmente abandonadas, sem alguém que as escute e possam ser instrumentos do exercício de sua autonomia. No campo da psiquiatria e da psicologia, abre novas possibilidades para o manejo daquele tipo de dor e sofrimento que não estão restritos às mazelas do corpo.
Vale a pena conferir a leitura. Para profissionais de saúde, é uma leitura tão importante quanto a de um atlas de anatomia…diria mesmo que as duas leituras se complementam. Na primeira, a morte se apresenta como categoria biológica que oferece o subsrato da matéria para que aprendamos a cartografia dos corpos vivos. Na segunda, lidamos com a verdadeira realidade dos corpos vivos mesmo que moribundos, portadora de singularidade e de vida que transcende em muito tudo o que um atlas pode nos oferecer.
Por Emilia Alves de Sousa
Oi Erasmo,
Você sempre nos possibilitando essas reflexões sobre uma
temática tão relevante, mas que nas práticas de
trabalho da maioria dos profissionais, nos espaços de saúde,
ainda é escanteada.
Muito louvável essa iniciativa da médica Elizabete Kluber.
Obrigada pela indicação do livro! Vou procurá-lo
Estamos nos organizando no HILP para um debate
sobre essa temática e esperamos contar com você.
Um grande abraço com votos de uma feliz páscoa!!!
Emília