São João e Morte Com Manuel Bandeira
As quadrilhas ganham figurinos elaborados, participam de concursos, buscam patrocínio. As empresas de turismo vendem maravilhosos pacotes, uma verdadeira caravana pelo nordeste, onde a ferocidade do cangaceiro jaz subserviente como um ícone na canga do mercado.
Tem noiva, noivo, padre, tudo tão estilizado que parece perder sua raiz na memória. E a comida arduamente preparada em tacho e pilão pode agora ser comprada na mercearia ao lado.
Recebi da grande amiga Sheylla este poema de Manuel Bandeira que havia lido na saída de minha adolescência. Hoje posso revê-lo sem nenhuma ambiguidade e rememorar todos aqueles que pularam fogueira comigo e que agora dormem o mesmo sono que um dia dormirei.
Eita velho "Mané", fonte inesgotável de reflexões sobre a minha e a sua mortalidade. Por que não, então, um São João com morte para celebrarmos a vida e a memória? Para tornar o gosto do milho mais intenso, para sentir mais forte o perfume do quentão, para cair nos braços da noiva da quadrilha é bom refletir com Bandeira!
Profundamente
(Manuel Bandeira)
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes e risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados Dormindo
Profundamente
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo. Profundamente.
Por jacqueline abrantes gadelha
Querido amigo,
Ontem, no percurso das visitas domiciliares nas ruas do Panatis, pude sentir que as bandeirolas coloridas e as cinzas das fogueiras acesas na noite anterior provocavam algo de diferente no cenário de violência instalada em um dos locais mais vulneráveis do nosso território. Lá, onde jovens adormecem precocemente, onde as crianças relatam histórias de agressões e de vinganças, as bandeirinhas de São João balançavam alegres e teimosamente sobre as nossas cabeças como se estivessem a clamar por alegria. A memória vagando pelas festas juninas na infância, essas mesmas que tão bem relata e que parece não mais existirem, trazia as lembranças das festas nas quais adormecemos, não vemos o fim, mas mesmo assim, carregados no colo para os quartos pelo pai, mãe ou avós, dormimos felizes.
As bandeirinhas, a fogueira, o seu texto e o poema de Manuel Bandeira, além das lembranças dos que adormeceram profundamente, instigam uma pergunta inevitável:
O que está dormindo em nós?
Um abraço,
Jacqueline