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Matelândia, no oeste paranaense, conseguiu reduzir em 50% o consumo de medicamentos e conquistar a população promovendo rodas de conversa e valorizando a história de cada usuário

Quem cruza o oeste paranaense pela BR-227 no trecho entre os municípios de Cascavel e Foz do Iguaçu, já nas imediações da fronteira Brasil-Paraguai, pode passar batido pela pequena cidade de 16 mil habitantes à beira da estrada. Mal desconfia o viajante que, prestes a completar apenas 50 anos de fundação, a jovem Matelândia conta com um sistema público de saúde de fazer inveja a boa parte dos municípios brasileiros – no qual se destaca uma rede de atenção básica que chama atenção por seu atendimento resolutivo e humanizado.

Uma pequena amostra disso pode ser vista a poucos quarteirões da rodovia federal, na Unidade de Saúde da Família da comunidade da Vila Pasa, bairro de baixa renda do município. Inaugurada em novembro de 2004, a unidade da Vila Pasa é, entre as quatro de Matelândia, aquela que recebe o maior fluxo diário de usuários, sendo que grande parte deles traz problemas de saúde marcados por determinantes sociais.

“A população aqui da região enfrenta muita dificuldade e percebemos que 40% dos casos que os usuários traziam à unidade não diziam respeito a nenhuma patologia específica, mas a uma necessidade de orientação, desabafo, suporte. Chegamos então à conclusão de que grande parte desses casos dizia respeito a questões de saúde mental”, conta Marenilce Mezzomo, técnica de enfermagem que integra a equipe fixa da Vila Pasa.

Para enfrentar a questão, a USF deu um passo além do trabalho costumeiro de uma unidade básica de saúde: ampliou sua equipe, acionando assistentes sociais e psicólogos oferecidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Matelândia como apoiadores matriciais – modelo que oferece ainda profissionais como pediatras, ginecologistas e fisioterapeutas – e apostou em iniciativas complementares à rotina de prevenção e promoção de saúde.

O projeto “Rodas de Conversa em Saúde” foi uma das estratégias adotadas. Em atividade desde 2006, a iniciativa promove rodas de conversa nas quatro grandes zonas de saúde do município, que contam com a participação da população local e dos profissionais de saúde mental de cada uma das quatro equipes.

“A idéia das rodas de conversa foi montada a partir da necessidade de dar resposta à demanda de saúde mental das unidades”, explica a psicóloga Monica Mombelli, que coordena o projeto. “A idéia é que as rodas sejam espaços de escuta ao usuário, de acolhimento e estabelecimento de vínculo, assim como uma estratégia de desmistificação da função do psicólogo, já que muitas vezes o usuário precisa recorrer ao psicólogo mas acaba não fazendo isso por razões culturais”.

Realizadas sempre uma vez por semana, as rodas acontecem em centros comunitários próximos às unidades de saúde e até mesmo em residências de usuários. Além de conversar, os participantes desenvolvem atividades como cantoria e produção coletiva de artesanato.

“Por ser um espaço informal, nós temos em cada roda a chance de conhecer melhor muitas histórias de vida que talvez não seriam conhecidas de outra forma. Essas informações acabam colaborando na abordagem do caso de cada paciente. A roda atua também como uma espécie de suporte para pacientes que já tiveram alta dos atendimentos psicológicos”, explica a coordenadora do projeto.

Os resultados do trabalho já podem ser sentidos: melhora da auto-estima e autonomia dos usuários envolvidos e difusão de práticas saudáveis são alguns dos produtos das rodas. Nas unidades básicas de saúde de Matelândia, os bons frutos têm se traduzido em índices como a redução do fluxo de usuários e do consumo de medicamentos.

Resultados parecidos tem obtido o Projeto Caminhar, que todos os dias reúne em unidades de saúde, ginásios e escolas de Matelândia grupos de terceira idade organizados por agentes comunitários de saúde para a realização de atividades físicas orientadas. A ação resultou numa redução de 50% no consumo de medicamentos entre os pacientes acompanhados na rede.

A utilização de práticas complementares como a acupuntura, oferecida pelo município em toda a rede, também tem contribuído para a desmedicalização e aumento da autonomia dos usuários. “Desde que começamos a utilizar a acupuntura para tratar pacientes com depressão, por exemplo, observamos que houve uma redução muito significativa no uso da fluoxetina entre este tipo de paciente”, conta a fisioterapeuta e acupunturista Flávia Debona.

Iniciativas como as citadas são apenas mostras de uma concepção de saúde que vem se consolidando em Matelândia na última década e meia. “Muitas das ações desenvolvidas pela Secretaria foram criadas a partir da observação da realidade e necessidade dos usuários”, explica Nilson Mattana, usuário que preside o Conselho Municipal de Saúde de Matelândia desde 2004. Nilson destaca o papel que as Conferências Municipais de Saúde – realizadas a cada quatro anos desde 1994 – tiveram no estabelecimento das atuais diretrizes do SUS local.  “O que tem se buscado é resgatar o atendimento ao usuário como um conceito mais amplo”, resume a técnica em enfermagem Marenilce Mezzomo, da USF Vila Pasa. “Aqui o paciente é visto como um todo. Não basta que a gente atenda bem ao paciente na unidade, é preciso descobrir o que o levou a desenvolver uma determinada patologia e saber o que acontece quando ele volta pra casa”.

A dentista Fernanda Pandolfo concorda: “Conhecer o usuário é essencial para o meu trabalho. E conhecer o usuário não é só conhecer os problemas da boca: é conhecer também os problemas de moradia, de alimentação e outros”. Para ter acesso a esse conhecimento, conta a dentista, o trabalho dos agentes comunitários de saúde é essencial.

“Trabalhamos sempre com os dados trazidos pelos agentes, porque eles conhecem melhor do que ninguém as histórias de vida dos pacientes”, explica Fernanda.  Trocas sobre histórias de vida de pacientes e discussão de casos, conta a dentista, têm espaço garantido durante a reunião diária de 30 minutos realizada pela equipe – às quintas-feiras, os encontros duram uma hora.

Farmacêutica bioquímica formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com especialização em Saúde Coletiva, a secretária municipal de Saúde de Matelândia, Margarete Debertolis, faz coro com os profissionais da rede de atenção básica do município: “Em Matelândia uma unidade pode até ficar sem um médico, mas nunca sem um agente comunitário, porque é com ele que o usuário tem maior vínculo”.

Cumprindo seu quarto mandato à frente do cargo, Margarete chegou a coordenar o Programa de Saúde da Família no Paraná e, a serviço do Ministério da Saúde, acompanhou a implantação do PSF nos estados do Ceará e Amazonas. Ela estava no comando da Secretaria Municipal de Saúde de Matelândia em 1998, quando a Estratégia de Saúde da Família começou a ser implantada no município em caráter experimental.

O premiado processo de implantação do PSF em Matelândia chegou a meados dos anos 2000 com 100% de cobertura e equipes bem treinadas para trabalhar sob a lógica da Saúde da Família. Mas a secretária não estava satisfeita. “Em 2006 nós já tínhamos capacitação técnica para o PSF, mas sentimos que ainda faltava alguma coisa. Descobrimos que era a humanização”, conta Margarete.

A partir desta percepção o Acolhimento passou a ser, nas palavras da secretária, o novo grande diferencial na organização dos serviços de saúde de Matelândia. “A reorganização orientada pelos princípios da Política Nacional de Humanização mostrou que tratar a saúde hoje não é mais apenas competência de um único profissional e sim de uma equipe capacitada que possa atender diferentes situações, não apenas as de caráter institucional, mas também comunitária, e não apenas se concentrar em intervenções curativas, mas também nas preventivas”, explica.

A garantia de acolhimento, assim como a resolutividade da atenção básica de Matelândia, ajudam a explicar um fato curioso que é motivo de orgulho para os profissionais da rede municipal de saúde: os cerca de dois mil trabalhadores do frigorífico que é o maior empregador do município, mesmo tendo acesso a um plano de saúde privado, têm preferido buscar atendimento na rede SUS local. Na verdade, nada que chegue a surpreender num município em que a população teve e continua a ter papel essencial na consolidação do direito a um serviço público de saúde de qualidade.

“Há um grande respeito em Matelândia com relação às conquistas que a saúde já alcançou no município. É até complicado para qualquer gestor mexer no que foi construído, porque a população não aceita”, garante a secretária. “Aqui, podemos dizer que a saúde não é política de governo: é política de estado”. 

 

 

 

 

(Esta reportagem integra a série produzida para a publicação Cadernos HumanizaSUS sobre o tema "Humanização na Atenção Básica", a ser lançada em breve pela PNH).