Vigotski e a diversidade humana no Enigma de Kaspar Hauser

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Kaspar Hauser é apresentado, como um jovem que fora criado em cativeiro sem ter contato com outras pessoas, sendo inclusive manejado como se fosse um boneco, por um personagem de chapéu e capa preta, que lhe traz alimentos o sustentando minimamente.

Repentinamente o protagonista é abandonado numa praça com uma carta na mão, sendo acolhido por toda a comunidade da cidade, da qual também vira objeto de curiosidade e especulação.

Por ter vivido anos isolado não aprendeu a falar, a ler, escrever ou até mesmo a fazer as refeições e comportar-se em sociedade, no início inclusive assusta-se com a presença de animais inofensivos como uma galinha.

Para Vigotski, o desenvolvimento intelectual do sujeito, ocorre em função das relações sociais e condições de vida, sendo a cultura e a convivência com outras pessoas componentes fundamentais para que esse processo aconteça de forma saudável.

Kaspar Hauser é exposto no circo como um grande enigma, para levantar fundos com os quais possa sustentar-se e não onerar os cofres públicos da pequena cidade onde mora. Outros sujeitos incomuns que apresentam deficiências tais como nanismo edisfunções na pele, também são mostrados no espetáculo circense numa espécie de show de horrores.

A grande questão a ser discutida aqui reside no fato de, mesmo após tantos anos passados, todos os avanços da ciência atual, a sociedade do século XXI não continua a reproduzir o preconceito contra as pessoas com deficiência, que ora são vistas como seres incapazes ou indefesos que precisam ser protegidos e acabam sendo criados em redomas por suas famílias? Ou são ignorados em sua singularidade e precisam encaixar-se num mundo onde não há lugar para elas, pois os espaços são idealmente planejados para as pessoas que atendem ao chamado padrão de normalidade?

 

Vigotski propõe que se supere qualquer noção da pessoa com deficiência em referência ao pressuposto da normalidade […] o autor busca investigar como o funcionamento psíquico se organiza nessa condição. Sua perspectiva inclina-se para a noção da diversidade humana, (NUERNBERG, 2008 p.309).

No início dos anos 2.000 não era raro ver em programas de televisão populares pessoas com deficiências ou situações de saúde atípicas expondo sua triste história de vida, para sensibilizar alguma alma caridosa que lhe providenciasse ajuda.

Para Vigotski, as pessoas com deficiência desenvolvem algum tipo de mecanismo compensatório que traz equilíbrio ao seu processo de aquisição das funções psicológicas superiores, onde por exemplo, não é raro perceber que a audição ou o tato dos cegos é muito aguçado para suprir a ausência da visão.

Souza (2019 apud AZEVEDO; CERQUEIRA; COELHO, 2020), acrescenta que o desenvolvimento compensatório depende prioritariamente de processos emotivos que se energizam nas relações interpessoais aprofundadas e na coexistência em coletividades típicas e atípicas.

Existe na trajetória de Kaspar Hauser uma alma caridosa que o liberta das humilhações do circo e o protege como tutor, suprindo suas necessidades materiais e cuidando inclusive de sua educação formal.

Nosso protagonista faz alguns progressos, mas mesmo assim compara-se constantemente com seu tutor tendo a consciência de que tem muito a aprender, podemos observar nessa etapa a ampliação da sua zona de desenvolvimento proximal e as tentativas de imitação ao seu tutor.

Ao ser ensinado sobre a fé em Deus, o protagonista demonstra espírito crítico ao refutar tal ideia alegando que precisa primeiro aprender a escrever melhor para depois acreditar em algo abstrato como a divindade superior.

Kaspar ainda é levado a uma festa de um milionário excêntrico, que tem interesse em adotá-lo, mas novamente é exposto “como uma aberração da natureza” que desperta a curiosidade das pessoas numa sociedade frívola e que valoriza o poder, dinheiro e as aparências, não muito diferente do que experimentamos atualmente.

Por fim Kaspar é assassinado, sem que tenha desenvolvido as funções psicológicas superiores de forma completa para contar sua própria história, e o enigma é explicado pelos médicos, ao analisar seu cérebro  percebem que um lado é superdesenvolvido e o outro não, uma análise superficial e puramente biológica.

Referências

AZEVEDO, Kátia Rosa; CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira; COELHO, Cristina Massot
Madeira. IGUALDADE, INDEPENDENTEMENTE DO QUE SEJA DIFERENTE:
representações sociais sobre inclusão de jovens com deficiência intelectual. Psicologia
Escolar e Educacional, [S.L.], v. 24, p. 1-8, 2020. na. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/2175-3539202093928. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/rbg6hc4GqyTfTqTzbqbrMMJ/?lang=pt. Acesso em: 06 nov.
2021.

NUERNBERG, Adriano Henrique. Contribuições de Vigotiski para a educação de pessoas
com deficiência visual. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 2, p. 307-316, jun. 2008.