psiquiatra é condenada pelo crime de seu paciente
Débora Diniz, antropóloga que escreveu "A custódia e o tratamento psiquiátrico – Censo 2011", livro sobre os hospitais-presídios, traz agora uma notícia inquietante sobre a relação entre psiquiatria e justiça.
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PSIQUIATRA FRANCESA CONDENADA POR CRIME DE SEU PACIENTE
10/01/2013
Por Débora Diniz, em Correio Braziliense – 7/1/13
Danièlle Canarelli não foi a primeira psiquiatra a ser penalizada pelos crimes de seus pacientes. Seu caso, no entanto, o mais recente com repercussão internacional e o primeiro na história da jurisprudência francesa, envolveu Joel Gaillard, homem com histórico de internações psiquiátricas compulsórias, acusado de matar o avô por afinidade com um machado. A corte de Marselha considerou o assassino inimputável e o absolveu do crime. Em vez da prisão, ele foi encaminhado para tratamento psiquiátrico compulsório. Para a família da vítima, a decisão da corte foi injusta, por isso o alvo da contestação judicial passou a ser a médica psiquiatra. Doutora Canarelli foi considerada culpada por não conseguir manter Joel internado em um hospício e, mais surpreendente ainda, por não conseguir antever a periculosidade dele.
O caso provocou um rebuliço nas associações de psiquiatria na França. Não me interessam os argumentos corporativistas dos psiquiatras, mas o entendimento de como a origem do caso está na própria ambiguidade da psiquiatria como campo médico a serviço da Justiça penal. Nas palavras do presidente da União Sindical Francesa de Psiquiatria, Olivier Labouret, "a psiquiatria não é uma ciência exata". Esse seria o principal argumento em favor da doutora Canarelli: não haveria como antever a periculosidade de Joel. Mas de onde vem a ambição pela exatidão se o porta-voz da psiquiatria assume a incompetência da especialidade médica como voz oracular sobre a saúde mental dos indivíduos? Uma simples mirada na história da psiquiatria, de sua gênese com Philippe Pinel à revolução dos medicamentos pela indústria farmacêutica, mostra uma metamorfose de incertezas diagnósticas e de tratamento. Sem exageros retóricos, a psiquiatria está mais próxima das ciências humanas que das especialidades médicas vizinhas, como a neurologia.
A verdade é que a expectativa de exatidão vem de outra ambição do poder psiquiátrico – nem tanto da clínica, mas de sua sedução como saber pericial a serviço da segurança pública. O que a corte de Marselha reclama é por um responsável pelo homicídio: não sendo Joel, pois é descrito como esquizofrênico paranoide e inimputável, cabe localizar, no mesmo saber que anuncia sua irresponsabilidade penal, a responsabilidade por permitir que o louco esteja fora das grades do manicômio. Em resumo, a lógica da Corte foi a seguinte: a doutora Canarelli não manteve Joel em regime de tratamento compulsório em um hospício, não foi capaz de prever um acréscimo de seu delírio com risco concreto de violência e, não sendo ele responsável por seus atos, ela é a figura culpável por não ter controlado o destempero do louco violento.
Há vários equívocos nesse argumento circular e persecutório da Justiça. O mais importante deles é apostar que a psiquiatria, ou qualquer outro saber, possa antever com precisão a periculosidade de qualquer um de nós. Um surto esquizofrênico pode vir acompanhado de riscos à segurança do próprio indivíduo ou das pessoas com quem ele convive. Mas o que pode ser antecipado sobre os riscos é que eles precisam ser acalmados, ou, em termos médicos, que o indivíduo em surto precisa ser cuidado. O segundo equívoco é acreditar que o louco é um indivíduo perigoso por natureza. A periculosidade é parte dessa engrenagem produzida pelo saber psiquiátrico em seu encontro com a Justiça penal – um laudo psiquiátrico atesta a periculosidade do indivíduo em sofrimento mental e passa a ser um documento com forte poder de convencimento de um juiz. Nesse sentido, a mesma psiquiatria que se descreve como ciência inexata para defender a penalização da doutora Canarelli se assume como exata para emitir laudos de periculosidade sobre os indivíduos em medida de segurança no Brasil, por exemplo.
O crime de Joel tem uma linguagem típica da loucura infracional: ele matou alguém de seu círculo familiar e doméstico. No Brasil, o recente censo do Ministério da Justiça sobre os estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico mostrou que 3.989 indivíduos vivem em 26 unidades e que quase a metade daqueles que cometeram crimes contra a vida, como tentativas de homicídio ou homicídios, o fez contra a sua rede familiar ou doméstica. É nas relações de cuidado que a violência da loucura primordialmente se expressa, seja porque a casa é um espaço de risco ao louco, seja porque o louco não transita no mundo. Ao contrário do que a família da vítima imagina ao perseguir a doutora Canarelli na impossibilidade de incriminar Joel, a sentença judicial que o absolveu lhe imputou um destino ainda mais atroz. Dois séculos após a cena performática de Pinel de rompimento das correntes dos loucos do Hospital da Salpêtrière, em Paris, a vida em um manicômio judiciário é ainda repleta de incertezas e esquecimentos.
Débora Diniz é Antropóloga, professora da UnB, pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) é autora do livro A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: Censo 201