Compartilhando angústias
Tenho lido, quase que diariamente os depoimentos, as cartas, as diversas contribuições que muitos têm dados à formação dessa rede. Entrançados de persistência a compõem… às vezes, penso: que teimosia!
Sou médica há dez anos e há dez anos trabalho com ESF. Minha história se confunde com tudo que já foi feito ou pensado para tal programa; confunde-se principalmente com as frustrações de profissionais que se envolvem e sonham com o seu êxito. Nem sei mais quantas vezes tive que deixar municípios pela mudança do seu gestor. Nem sei quantas vezes tivemos grupos desfeitos pela prioridade da “consulta médica”. Mas sei quantas férias e décimos terceiros já tive: nenhum! Na verdade, tive um mês, de comum acordo com o gestor, quando meu filho nasceu.
Minha atuação não tem carga horária definida, apesar de sempre persistir em trabalhar a ESF conforme preconizado. Todos os profissionais de saúde sabem da singularidade de fazer saúde da família e não conheço um só colega que não gostaria de vivenciá-lo plenamente. Mas, lhes garanto: as condições impostas são extremamente desfavoráveis à realização do trabalho que desejamos.
Em todas as cidades do interior do estado, e essa condição não é diferente do resto do país, creio que existem pequenos hospitais (antigas APAMI, filantrópicos, municipais construídos “naquela “ eleição do deputado…) que têm por obrigação atender a demanda espontânea nas 24 horas. Quem são os médicos dessas unidades? Na maioria desses hospitais o médico e enfermeiro de plantão são da ESF.
Temos a unidade básica de saúde que serve de “sede” para o atendimento básico e também para encaminhar os internamentos quando necessários. Em alguns hospitais, cobrimos també4m obstetrícia: se a parturiente chega em horário de consulta da atenção básica, ou de reunião de grupo, todos aguardam a evolução do parto, ou se aparece sutura ou urgência, corre o médico da ESF para o hospital. E esse médico, faz parte de qual equipe? Qual a sua área adscrita? Aí só olhando no SIAB!
Não consigo imaginar nenhuma cidade do interior do estado do RN, que não abrigue hospital regional ou grandes hospitais filantrópicos, que não possua esse perfil de “saúde”.
E os questionamentos se equalizam com a justificativa: como poderia uma cidade tão pequena pagar a mais de um médico? Então, continuamos fazendo saúde da família no hospital! E o hospital é sempre a referência. E as visitas são interrompidas pela diarréia; e as reuniões de grupo se desfazem pela crise asmática.
Resquícios do antigo sistema? Escassez de recursos? Cultura da hospitalização? Gente procura por atendimento, busca ser acolhido onde quer que esteja a resposta. E sua avaliação dos serviços ainda se pauta na simples presença do profissional.
Poucos foram os hospitais do interior que aderiram à política de hospitais de pequeno porte, e mesmo os que desejam aderir aguardam há muito pela inclusão, dependendo de recursos municipais (de atenção básica) para continuar abertos.
Como justificar a uma população o fechamento de um hospital? Como manter profissionais de plantão com recursos da atenção básica? Como coibir que se confundam e se misturem complexidades diversas, tempos diversos, valores diversos, no atendimento a uma mesma população com um recurso limitado?
“ Que se faça atenção básica! Fechem-se hospitais!” Que se acolha o portador de transtorno mental, fechem-se os manicômios!” E o que seria de nós, que moramos na maior serra do estado, se tivéssemos que remover todos os nossos partos, e pneumonias, e dengues… Que CAPS nos acolhem? Não há referência para os portadores de transtorno mental! Como trabalhar com estes pacientes se nem temos chance de exercer a ESF?
Em todas as rodas, de usuários a profissionais, até mesmo nas de gestores, a conclusão parece a mesma: a atenção básica não funciona. E o que se vê é recurso injetado em grandes hospitais, terceirização de serviços, multiplicação de cooperativas médicas.
Outro dia, lendo a carta de uma psicóloga de Fortaleza aos jovens médicos (divulgada pela rede), culpei-me pelas tantas vezes nas quais me omiti diante dos diversos fatores que determinam tantas dores, tanto apelo, tanto sofrimento! Chorei pelos dez anos que tento construir saúde como acredito que seja possível. Mas, quero complementar sua valorosa contribuição à vida dos jovens colegas: não há nada mais compensador do que reconhecer no rosto de alguém a confiança e o apego, que vão além da relação médico paciente, são fruto de uma intimidade construída no dia-a-dia, sem pressa, sem valores, sem papéis, sem filas; poder adentrar a sua casa dizendo apenas: passei somente para ver você!
Por Shirley Monteiro
Michella,
Senti junto com voce, algumas destes sentimentos, entremeados nestas linhas, em relação a uma APAMI, quando trabalhei em uma cidade do interior do RN, por 1 ano, e como Psicologa. Eu ia dois dias da semana, no fim de semana, por causa do outro serviço em Natal.
Acho muito importante este espaço de expressão das angústias também !! O seu POST é importante por vários aspectos na apreensão da realidade, e do muito que se há a fazer, principalmente junto aos gestores, e ainda mais na forma como são "escolhidos" os Secretários de Saúde, pelos municípios do país.
Um Abraço !
Shirley Monteiro.
NATAL- RN