A teoria keynesiana e o sistema de saúde

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Marcos Bosi Ferraz*

Infelizmente, presenciamos nesta crise econômica mundial a falência da teoria da mão invisível de Adam Smith.

O reconhecimento do impacto da crise econômica global em nosso país impõe a necessidade de revisão dos orçamentos da União, Estados e municípios, e consequentemente o exercício de escolher frente às inúmeras necessidades e compromissos já assumidos em um ambiente de escassez de recursos. Em momentos como este é frequente o resgate de assuntos específicos como forma de alívio às angústias do curto prazo. No setor da saúde, o ressarcimento ao
SUS pelas operadoras de planos de saúde e a demanda pelo término da isenção fiscal parcial para cidadãos e empresas que adquirem planos de saúde são exemplos vivos e tristes deste processo.
 

Três aspectos merecem uma séria reflexão em momentos de restrição econômica em ambientes complexos e com extremas necessidades. O primeiro refere-se à tomada de decisões em sistemas complexos, o caso do sistema de saúde. A busca de soluções simples, rápidas, com um olhar de absoluto curto prazo em ambientes complexos frequentemente é equivocada e contribui para a entropia do sistema. Ainda, o sistema de saúde é um exemplo clássico de que o planejamento de curto prazo, aliado à instabilidade do processo regulatório, induz ou contribui para a sua ineficiência. Trata-se de um sistema com inúmeros interesses e que responde a incentivos, alguns destes atualmente perversos. Será que nos casos citados há um estudo minimamente orientado para
reconhecer as consequências destas decisões no médio e longo prazo?
 

O segundo aspecto diz respeito à atual estruturação e concepção de nosso sistema de saúde. Algumas perguntas muito simples e fundamentais talvez ainda não tenham uma resposta claramente definida. Algumas respostas, embora escritas no papel ou faladas em discursos, não condizem com a prática diária observada. Após 20 anos de SUS e 10 anos de ANS, temos de fato um sistema único de saúde, ou um sistema público e um sistema suplementar que competem desesperadamente por mais recursos? O que caracteriza a designação "sistema suplementar", que hoje possui 41 milhões de beneficiários de planos com assistência médica?
 

Será que estes 41 milhões de brasileiros pagam adicionalmente por que desejam apenas conforto ou desconfiam do acesso e da qualidade dos serviços prestados pelo SUS? Será que o Estado reconhece de fato suas deficiências e limitações na formulação de políticas públicas e gestão de recursos públicos, ou interessa a manutenção de um ambiente confuso? Ou ainda, qual a razão da existência de planos de saúde há pelo menos meio século? Interessante observar que a contratação dos mesmos foi e tem sido estimulada por grupos organizados de trabalhadores há várias
décadas.

Hoje mesmo, vale a pena observar os custos do sistema suplementar para os cofres públicos, uma vez que nem os Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário o dispensam. Será que nossos mais altos governantes não deveriam dar exemplo e confiar no SUS? A ausência de respostas a estas perguntas impede um planejamento sério, harmônico e responsável.
 

O terceiro aspecto considera as causas da atual crise econômica e faz uma analogia à crise do sistema de saúde, já presente e observada em vários países há pelo menos três ou quatro décadas.O Brasil se constitui num caso ilustrativo. Infelizmente presenciamos nesta crise econômica mundial a falência da mão invisível de Adam Smith.
 

Voltamos a valorizar a teoria econômica de John Maynard Keynes, na qual o Estado deve assumir um papel regulador da economia, sem excessos e/ou intervenções. Para Keynes a presença do "espírito animal" do ser humano justifica tal papel. A ambição, a
insaciabilidade em um ambiente muito complexo, em rápida evolução, com ativos poucos tangíveis, e passível de ser conduzido por interesses específicos, impõe tal regulação.

Este mesmo cenário já caracteriza há alguns anos o sistema de saúde. Investimentos em saúde implicam em retornos futuros. A ciência biológica é, por natureza, incerta, feita de verdades transitórias e com intensa assimetria de informação. É ainda permeada por interesses específicos que se sobrepõem aos interesses coletivos. A regulação do sistema de saúde é, portanto, imprescindível. Para que a regulação aconteça de forma plena e satisfatória, é necessário, além de identificar e reconhecer aonde nós queremos chegar e em que tempo, estabelecer um ambiente de confiança onde regras não sejam mudadas fortuitamente para atender a desejos e pressões de curto prazo.
 

Por fim, há outras perguntas muito simples e claras que necessitam ser enfrentadas, seriamente discutidas e respondidas de forma responsável. Será que temos hoje condição de oferecer aos brasileiros um sistema de saúde (seja ele qual for) capaz de dar de tudo para todos aqueles que necessitam do sistema de saúde? De fato, qual o atual significado de universalidade, integralidade e equidade em saúde, num mundo globalizado e com uma enorme velocidade de geração de conhecimentos?
 

Nosso sistema de saúde, em crise há vários anos, sofre cada dia mais com a indefinição de seus objetivos e com a incapacidade de regulação adequada por parte do Estado. O espírito animal do ser humano, neste caso, já se integrou ao sistema de saúde, um setor ou sistema muito peculiar, que acima de tudo "vende" esperança!
 

 

 

*Marcos Bosi Ferraz é professor e diretor do CPES/Unifesp. Diretor de Economia Médica da Associação Médica Brasileira e autor do livro "Dilemas e Escolhas do Sistema de Saúde"

marcos.ferraz@fleury. com. br