Sobre carroças e diabéticos brasileiros, ou a insulina brasileiro-ucraniana
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Texto escrito em abril de 2013, após notícia da produção binacional (Brasil/Ucrânia) de insulina NPH.
Em 1986 fui diagnosticada com diabetes mellitus aos 9 anos de idade, iniciando o tratamento com aplicações de insulina NPH, descoberta entre a década de 30 e 40. Não era humana, porque não se processava insulina humana ainda. Eu utilizava a insulina bovina, tendo em vista que a suína, indicada como melhor pelos médicos, também era mais cara, e nenhuma delas era distribuída pelo Governo. O Sistema Único de Saúde – SUS, criado pela Lei nº 8.080/1990, ainda não existia.
A NPH restringia bastante as minhas atividades, pois, em razão dos picos de atuação (momentos em que o efeito da insulina se torna mais forte), precisava me alimentar impreterivelmente a cada 3 horas. Se ficasse mais de 3 horas sem ingerir algum alimento, sofria hipoglicemias, cujos sintomas são tremores, tontura, perda temporária da capacidade cognitiva, podendo chegar a espasmos – a "grosso" modo, uma crise convulsiva.
Embora seguisse à risca a dieta alimentar, que excluía qualquer tipo de alimento que contivesse açúcar em sua composição (na época não existia refrigerantes sem açúcar, e chocolate para diabéticos era "Pan" ou o caríssimo "Gerbeaud"), um ano depois do diagnóstico, fui acometida por catarata nos dois olhos, típica complicação do diabetes.
Aos 10 anos de idade tinha aproximadamente apenas 40% da minha visão, e não podia ser operada ainda porque meu corpo estava em fase de desenvolvimento. Como não enxergava o que a professora escrevia na lousa, mesmo da primeira carteira, me sentava junto de uma colega, que me ajudava a copiar a matéria (meu caderno era uma brochura toda branca, porque não enxergava as linhas de um caderno normal, e utilizava canetas hidrocor para fazer anotações, porque também não enxergava as tintas de canetas esferográficas, nem dos lápis). Para fazer provas, minha mãe gravava numa fita K-7 os textos dos livros didáticos para eu ouvir, e as professoras me submetiam a teste oral.
Entre 1987 e 1992 recuperei um pouco da visão, e continuei meus estudos normalmente, com injeções de NPH, cadernos, lousas e esferográficas. Mas em 1993, quando então contava com 16 anos, a catarata avançou mais, e minha visão ficou restrita a 30% nos dois olhos. Não enxergava meu rosto em frente ao espelho. Tive que parar de estudar para cuidar da minha saúde e conseguir realizar a cirurgia do olho esquerdo. Fiquei 6 meses esperando a minha glicemia se regularizar, pois esta era uma condição para que eu pudesse ser operada.
Lembro que, poucos dias após a cirurgia, os resultados já começaram a aparecer. Ficava maravilhada com o verde das árvores, e com o brilho das cores da natureza, porque a catarata opacifica a visão. É como se houvesse uma cortina branca na frente dos olhos. Desde 1987 não via nada com brilho. Antes, o mundo era opaco pra mim, e agora brilhava!
Segui com meus estudos e entrei na Faculdade de Direito em 1997, sabendo que a vida seria sempre uma batalha, sendo eu diabética ou não. Mas o fato é que o meu histórico prévio da doença, aliado aos "conselhos" médicos da época, não me fizeram uma pessoa muito otimista. Costumo dizer que criança que não é diabética sabe que, quando apronta, vai sofrer algum castigo e não poder brincar, mas criança diabética que não segue as regras sabe desde pequena que seu "castigo" é a morte. Vi o tio de uma amiga, diabético, falecer aos 30 anos de idade, cego, com insuficiência renal, problemas nas extremidades e no coração. Fiquei muito impressionada com isso, e achei que não passaria dos 30.
Mas passei! Pouco antes de fazer 30 anos, em 2004, comecei a utilizar a insulina glargina (lantus), patenteada pela francesa Sanofi-Aventis no início da década de 2000. Sem picos de atuação, a insulina permite uma flexibilidade maior no quotidiano do diabético e, aliado às insulinas ultrarrápidas, que começam a agir 15 minutos após a aplicação, é possível comer de tudo. Meu grande prazer era ficar 6 horas sem comer nada, pelos simples fato de não ser mais "obrigada" a comer a cada 3 horas. As crises hipoglicêmicas diminuíram significativamente.
Em 2007, mesmo depois de casada, minha mãe ainda me ajudava a pagar os insumos de diabetes, num total de R$ 800,00 por mês. Sentia-me um peso por causa disso, e comecei a procurar o fornecimento de insumos pelo SUS. Antes de receber uma resposta negativa para recebimento da lantus e da ultrarrápida, tive que passar em vários postos da prefeitura e da Secretaria da Saúde do Estado, pois não havia informações corretas quanto ao local para requerimento dos remédios, e quando eu achava o local, não estava mais lá, já havia mudado para outro endereço.
Assim, em 2008 comecei minha batalha judicial pelo fornecimento de insumos de diabetes, sendo eu mesma a minha primeira cliente. Quando consegui a liminar para receber todos os meus insumos, liguei para minha mãe, e disse que ela não teria mais gastos comigo. Senti um peso enorme ser retirado das minhas costas. E vieram outros clientes diabéticos, e outros processos. Em todos eles, a Secretaria da Saúde alegava que fornecia a NPH, que seria similar à glargina pleiteada, e eu explicava para os Juízes que na prática e na composição farmacológica as insulinas eram bem diferentes. Assim, em função da não similaridade, o Estado era obrigado a fornecer a insulina melhor.
Os Juízes, por sua vez, só concediam o fornecimento dos insumos pelo SUS se considerassem que o paciente era praticamente miserável, restringindo judicialmente o acesso ao Sietema Único de Saúde, que por sua própria determinação legal é UNIVERSAL (ou seja, deve atender a todos, ricos ou pobres).
Em 2009, tendo em vista o grande número de processos para fornecimento de tratamentos de saúde, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública para discutir a judicialização da saúde no Brasil, através da fala de especialistas no assunto das áreas jurídica, médica e administrativa. Fiquei sabendo desta audiência uma semana antes de sua realização e, verificando os documentos enviados pela sociedade civil, percebi que não havia qualquer menção ao diabetes, o que me surpreendeu, pois sempre recebi inúmeros folhetos de propaganda de associações de diabetes, e nenhuma delas se mobilizou para defender os diabéticos usuários do SUS.
Assim, enviei um texto em defesa do fornecimento judicial de insumos de diabetes face à omissão do Estado, e ainda em favor da quebra da patente da insulina glargina, da francesa Sanofi Aventis, da mesma forma que ocorreu no caso da AIDS.
Em Brasília, descobri que os procedimentos do SUS no que tange ao fornecimento de insumos de diabetes são muito diversificados pelo Brasil afora. Quem acredita naquela história de que na região Nordeste é tudo pior, está muito enganado. Em conversa com a Secretária da Saúde do Estado do Ceará, descobri que lá o fornecimento da insulina glargina "lantus" estava há muito padronizado. Ela não acreditou quando disse que no Estado de São Paulo, principalmente na Capital, era uma tarefa impossível receber essa insulina pelo SUS.
O menosprezo pelo assunto por parte do Governo ficou claro com a (falta de) participação do Ministério da Saúde no primeiro dia da audiência pública: o então Ministro, José Gomes Temporão, nem se dignou a comparecer ao evento, enviando seu assessor para falar que renovaria os protocolos do SUS, o que só aconteceu a partir de 2011, com a criação da CONITEC.
A despeito do meu pessimismo preeestabelecido, depois de conversar com vários Juízes e perceber que a falta de conhecimento sobre a gravidade do problema é que impedia o acesso dos pacientes aos remédios, seja via judicial seja via administrativa, e perceber que uma orientação adequada conseguia surtir efeitos extremamente positivos, principalmente acerca dos efeitos práticos das insulinas NPH e glargina, sentia que poderíamos ter um avanço, através da luta pela incorporação da lantus ao protocolo do SUS, que, apesar de ser o padrão mínimo de fornecimento, é utilizado por algumas administrações como teto.
Em meados de 2012 conheci Maristela Prilips, diretora da Associação Jacareinse de Diabetes, que por empenho próprio e sem apoio governamental ou institucional, conseguiu que o munícipio de Jacareí fornecesse a insulina glargina administrativamente. Mas logo no início deste ano de 2013, após reeleição por campanha centrada na saúde, o prefeito daquele município do interior de São Paulo substituiu o fornecimento de lantus pela NPH, que já está prejudicando os pacientes que retornaram à prisão alimentar dos picos de atuação dessa insulina, alegando excesso de gastos com o insumo.
O argumento, todavia, não se justifica na prática, pois o diabetes implica em gastos inevitáveis. Os efeitos do mau controle são devastadores, minando o funcionamento do corpo do doente em praticamente todos os órgãos, ou seja, o SUS terá gastos tanto para cuidar previamente do diabético, através do fornecimento de uma insulina melhor, ou, não fornecendo a glargina, através dos cuidados paliativos antes da morte por complicações da doença. Assim, melhor "investir" nos cuidados preventivos, garantindo qualidade de vida ao diabético (que vivendo melhor, trabalha melhor, consume melhor, ou seja, também contribui para o aquecimento da economia), do que gastar com hemodiálises, cirurgias de catarata, coração, etc (e condenar o diabético a ser um expectador da destruição lenta de seu corpo) tese também defendida em meu texto enviado para o STF.
Mesmo porque, os investimentos nessa área ainda são pequenos, posto que a maioria das administrações investe apenas o mínimo obrigatório estipulado pela Constituição Federal. Além disso, alguns gastos nem são especificamente com tratamentos de saúde, tanto que no início de 2012 a presidenta Dilma editou uma lei para especificar o que se caracterizaria como tal (ou seja, para explicar para o administrador público que gastos com reformas de prédios de secretarias de saúde não são investimentos em saúde).
No início desta semana uma amiga que conhece minha luta pelos direitos dos diabéticos perguntou se a nova insulina que seria produzida pelo Brasil e Ucrânia era boa. Não tinha visto a notícia ainda e, quando pesquisei no sítio da Fundação Oswaldo Cruz, instituição subsidiada pelo Ministério da Saúde, li uma entrevista a respeito do assunto, falando sobre a produção binacional de insulina recombinante.
Fiquei emocionada, porque as informações foram sendo passadas em conta-gotas. Quando eles usaram a palavra recombinante no início do texto, achei que era a quebra de patente da insulina produzida pela Aventis, a glargina (lantus), produzida a partir de DNA recombinante. Mas no meio da entrevista falavam em cristais e nas duas empresas que produzem as ultrarrápidas, também modernas. Então pensei que eram elas e, mesmo não sendo a mais cara (a lantus), também seria uma coisa boa.
Mas, depois que o Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz passaram mais informações sobre a produção de insulina pelo Brasil e Ucrânia, percebi que, infelizmente, não houve quebra de patente, a insulina que eles vão produzir é uma medicação obsoleta, a velha (de 1936) NPH. Estou frustrada! Acreditava que um sonho tinha se realizado, mas na verdade é uma farsa para mascarar uma insulina de tecnologia ultrapassada e dizer que é similar à mais moderna, sem picos de atuação, apenas pelo fato de utilizar tecnologia recombinante. Todas as insulinas atuais são processadas a partir de DNA recombinante, mas apenas a glargina tem duração estável, em razão da modificação de uma cadeia de aminoácidos. Portanto, não são similares, nem na composição, muitos menos no funcionamento.
Em uma comparação bastante grosseira, seria como o Governo Federal dizer que resolveria o problema do transporte no Brasil através do investimento numa fábrica nacional de carroças. É isso que eles estão fazendo: investindo milhões na produção de um medicamento obsoleto.
Segundo dados de uma pesquisa dibulgada recentemente no Congresso da Sociedade Brasileira de Diabetes, realizado em outubro deste ano de 2013 (veja reportagem sobre o assunto aqui), 60% dos diabéticos insulinodependentes estão descontrolados, o que comprova a ausência de efetividade das insulinas fornecidas pelo Estado no controle glicêmico e ainda na prevenção de complicações da doença.
Colocar uma criança hoje em tratamento de diabetes com a insulina NPH é sujeitá-la aos mesmos problemas, e ainda outros, similares aos que eu tive 20 anos atrás, opacificando a sua infância e adolescência. A diferença é que, na época, não existia tecnologia mais moderna para melhorar o controle da doença, e hoje existe.
No meu caso, tendo em vista as variações glicêmicas a que fiquei sujeita por longos anos utilizando a NPH, me tornei assintomática, ou seja, meu corpo não tem mais sinais de hipoglicemia ou hiperglicemia. Apesar de melhorar bastante com a utilização da lantus, o estrago causado pela NPH já se instalara. Durante 2011, ao menos uma vez por semana sofria crises graves de espamos (tipo de convulsão), e tive que colocar uma bomba de infusão de insulina com monitoramento de glicemia em tempo integral, também obtida através de processo judicial para fornecimento pelo SUS.
Assim, não há motivos para se comemorar. A produção da insulina brasileiro-ucraniana representa perda de investimento, e retrocesso no tratamento dos diabéticos. Nada menos que a inclusão da glargina e das insulinas ultrarrápidas no protocolo do SUS para diabetes é suficiente. Essa será minha bandeira!
A pergunta que fiz no meu texto enviado ao STF vai continuar a ecoar, até que a resposta seja diferente da atual. Qual resposta o Executivo brasileiro quer dar a uma criança de 9 anos quando questionar se sobreviverá sendo portadora de diabetes: que morrerá em 10 ou 20 anos, com múltiplas falências dos órgãos, ou que viverá muito tempo em função de um novo modelo de atendimento, que, assim como no caso da AIDS, será também exemplo ao mundo?
Quadro comparativo da atuação da lantus (azul escuro) – estável e sem pico de atuação, e da NPH (azul claro) – instável e com pico de atuação