O Homem e a Morte: Uma poesia de Manuel Bandeira

14 votos

Os espaços para aprender a morrer são muito exíguos. Como já foi destacado em outros posts, estamos em meio a falta crônica de um processo socializador para a morte. Dai que autores como Maria Julia Kovacs proporem uma educação para a morte. Partindo-se da premissa que a educação se configura como processo formal (o que aprendemos nas escolas, nos currículos estruturados etc) e informal (o que aprendemos mais ou menos de forma espontânea e/ou motivados por interesses diletantes), na ausência de uma "pedagogia" para o morrer objetivamente sistematizada, propomos a companhia dos poetas nessa caminhada como excelente maneira informal para nos prepararmos frente a morte.

Neste sentido, cumpre aos poetas serem a matriz de tradições filosóficas e aquilo que Antonio Gramsci chamava de núcleo de bom senso no senso comum. Assim, talvez a poesia seja um dos últimos redutos artísticos com significativa produção cultural sobre a morte e o morrer, produzindo sentidos que podemos nos apropriar para oferecer sentido às nossas próprias vidas.

Nos últimos anos podemos dizer que se consolidaram as representações da morte em seu sentido mais negativo. Estamos no reino dos esqueletos e das aberrações monstruosas, de figurações dos corpos em adiantado estado de putrefação nos perseguindo como zumbis. Creio que isso, além de exprimir uma certa percepção coletiva sobre a morte, acaba meio que retroalimentando essa mesma percepção. Haveria alternativa à estas imagens tão feias? Vejamos a seguir um belo poema de Manuel Bandeira:

O HOMEM E A MORTE

O homem já estava deitado

Dentro da noite sem cor.

Ia adormecendo, e nisto

À porta um golpe soou.

Não era pancada forte.

Contudo, ele se assustou,

Pois nela uma qualquer coisa

De pressago adivinhou.

Levantou-se e junto à porta

– Quem bate? Ele perguntou.

– Sou eu, alguém lhe responde.

– Eu quem? Torna. – A Morte sou.

Um vulto que bem sabia

Pela mente lhe passou:

Esqueleto armado de foice

Que a mãe lhe um dia levou.

Guardou-se de abrir a porta,

Antes ao leito voltou,

E nele os membros gelados

Cobriu, hirto de pavor.

Mas a porta, manso, manso,

Se foi abrindo e deixou

Ver – uma mulher ou anjo?

Figura toda banhada

De suave luz interior.

A luz de quem nesta vida

Tudo viu, tudo perdoou.

Olhar inefável como

De quem ao peito o criou.

Sorriso igual ao da amada

Que amara com mais amor.

– Tu és a Morte? Pergunta.

E o Anjo torna: – A Morte sou!

Venho trazer-te descanso

Do viver que te humilhou.

-Imaginava-te feia,

Pensava em ti com terror…

És mesmo a Morte? Ele insiste.

– Sim, torna o Anjo, a Morte sou,

Mestra que jamais engana,

A tua amiga melhor.

E o Anjo foi-se aproximando,

A fronte do homem tocou,

Com infinita doçura

As magras mãos lhe cerrou…

Era o carinho inefável

De quem ao peito o criou.

Era a doçura da amada

Que amara com mais amor.

Ao vislumbrar o poema podemos notar que parece subdividir-se em duas partes. Com relação a primeira estamos mais acostumados. Fala do pavor provocado pela idéia de morrer e do quanto podemos buscar mecanismos (reais e/ou imaginários) para fugir o máximo possível da morte. Ele não quer abrir a porta ao terrível esqueleto…pelo contrário, refugia-se no leito como um símbolo que nega a morte e ao mesmo tempo parece trazer refúgio e conforto. No entanto, quer queiramos ou não, a morte sempre está presente em nossas vidas.

Então, o protagonista do poema é surpreendido ao perceber que a morte não era tão terrível assim. E lá esta ela agora representada por uma doce mulher, um anjo, quase a imagem de uma bela mãe a trazer conforto, carinho e paz frente a uma vida de dissabores. Bandeira parece resumir com propriedade os extremos do sentimento com relação a morte e retoma parte da tradição romântica e simbolista ao apresenta-la como uma mulher.

No entanto, não existe um acordo. Na verdade, a morte parece ser as duas coisas ao mesmo tempo. Algo que traz medo pela dissolução que provoca, pelo convite ao desconhecido, mas também algo que não poderemos a nos furtar em encontrar um dia. Não seria melhor então investir nessa segunda imagem, pensarmos num anjo que proporciona refúgio, mesmo que, em certa medida ainda sejamos tomados pelo medo?

Que fique então a lição de Manuel Bandeira. A morte pode entrar em nossas vidas a qualquer momento pois lá está ela sorrateira batendo à porta. Quando isso acontecer, não haverá escapatória. A intensidade de sofrimento e dor nesse instante dependerá então de qual imagem cultivaremos. Penso, repenso e não consigo encontrar quase nada que seja mais reconfortante que o abraço da mulher amada!

ERASMO RUIZ