EU SOU CHARLIE!
Enquanto milhões de pessoas discutem as últimas e tediosas tendências de moda e outros tantos se preocupam com a balança de pagamentos, o mundo parece lentamente naufragar na barbárie. A algumas semanas uma escola no Paquistão foi atacada por guerrilheiros talibans que mataram quase 200 pessoas, dentre elas, 169 crianças.
Dia 7 de janeiro, a redação do semanário 'Charlie Hebdo' foi invadida por um grupo armado que chacinou 12 pessoas porque elas haviam ofendido a figura do profeta Maomé a partir de charges. As minúcias da ação podem ser lidas na internet. Chacina a sangue frio parece ser pouco diante do que foi feito.
Existe um certo odor pútrido de fascismo no ar, muitas vezes inadvertidamente alimentado por raciocínios que ensaiam compreender as razões da barbárie o que parece ser uma contradição de termos pois barbárie não tem razão.
Alguns podem identificar no ataque da França elos que ligam esse pais ao cerco de Jerusalem pelos cruzados ou, nos anos 60 do século passado, aos massacres perpetrados pela política colonialista francesa na Argélia. Mas a História não é feita de relações de causa e efeito. O que aconteceu em Paris é um estilhaço das muitas pedras que formam o mosaico da barbárie que aposta na sua única forma de anulação da diferença que é a anulação definitiva do oponente pela morte.
Um acontecimento como esse deveria gerar um “brado retumbante” de indignação. Infelizmente isso não é verdade. Se o leitor tiver um pouco de paciência, basta ler os comentários de sábios internautas sobre a notícia do atentado. Em síntese grande parte dos comentários caminham na seguinte direção: “Lógico que não se pode apoiar uma coisa dessas, porém, os jornalistas também eram radicais pois atacavam a fé das pessoas. Era esperado que isso fosse acontecer”. Implícito no raciocínio a ideia de que de certa forma, quem ataca a fé das pessoas “merece”, “deve” ou “terá” esse destino.
Mas o que é o o ataque a fé? O Jornal “Charlie Hedbo” ainda era uma pequena chama viva do movimento de maio de 68. Assim, atacava de todos os lados os valores “sagrados” da sociedade burguesa, incluso o uso político da religião. Para isso não se utilizava de artigos do tipo analítico. Carregava na causticidade da sátira. Ah, e como a sátira é ameaçadora pois como nos alertava os romanos, ela ridiculariza os costumes. E sobrava fogo ainda a para o belicismo, o racismo, o sexismo e outros tantos “ismos” que destroem o humano em nós.
O argumento de que o Charlie Hebdo atacava a fé não se sustenta. Fé é a crença no “invisível” nas coisas que carecem de demonstração lógica e racional. O problema não é esse mas o que se pode fazer em nome do “se ter fé” em algo.
Se a “fé” diz que uma criança de 10 anos de idade engravidada pelo próprio pai não deve fazer aborto porque isso é pecado então a fé deve ser ATACADA!
Se os interesses corporativos da Igreja católica acobertam os casos de pedofilia nos seminários “em nome dos interesses da fé” então a “fé” deve ser ATACADA.
Se grandes grupos cristãos evangélicos se transformam em conglomerados empresariais e em nome da fé não divulgam onde investem seus rendimentos já se sabendo de antemão que parte deles irá para indústrias que comprometem o meio ambiente e até produzem armas que matam civis indefesos, então a “fé” deve ser ATACADA.
Se um grupo islâmico organiza uma teocracia intitulada de “Estado Islâmico” e em nome da “fé” executa com requintes de crueldade milhares de seres humanos, então, a “fé” deve ser ATACADA.
Se em nome da fé um homem se julga no direito de espancar uma mulher porque ele tem a primazia de ter sido criado antes de Eva, então a “fé” deve ser ATACADA.
Se em alguns países islâmicos da África se pratica a infibulação (mutilação do clitoris) em nome da fé, então a fé deve ser ATACADA.
Se você entendeu as razões da barbárie, uma pena! Triste do mundo que equipara a radicalidade da tinta e do papel com a radicalidade de fuzis produzindo a morte a sangue frio da diferença. No passado a religião produziu seus mártires. Chegou a hora das sociedades laicas terem também os seus. VIVA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO! EU SOU CHARLIE!
Por Erasmo Ruiz
Crédito: Rodrigo Brum