A participação social no SUS enquanto diretriz constitucional
Saúde é direito de tod@s
No Brasil, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, a saúde pública constituía direito conferido exclusivamente aos trabalhadores regulares e aos contribuintes autônomos, efetivado através dos serviços de saúde prestados pelo Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, e posteriormente pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS.
Com a abertura política e o fim da ditadura militar no Brasil, após a instituição do Sistema Único de Saúde – SUS pela Constituição Federal e pela Lei nº 8.080/90, que absorveu e ampliou as atividades do INAMPS, a saúde passou a ser um direito de todo cidadão no Brasil, sendo ao mesmo tempo um dever de prestação do Estado (artigo 196, da Constituição Federal).
Trata-se de um dos direitos sociais – dispostos no artigo 6º da Constituição Federal – conceito ao qual se atribui definições diversas na doutrina jurídica brasileira, mas que podem ser reunidas na idéia de direitos fundamentais referenciados constitucionalmente à vida humana, possibilitando igualdade no exercício da dignidade.
A saúde no Brasil ainda integra os direitos fundamentais de segunda geração, que, em contraposição aos direitos fundamentais de primeira geração – de cunho individual, que limitam a atuação estatal (como, por exemplo, a liberdade de ir e vir) – são direitos que revelam a busca da realização da igualdade, de uma efetiva democracia social, que exigem a intervenção do Estado, e que se realizam por meio de serviços públicos.
Desta forma, para garantir que o direito à saúde fosse materialmente efetivado (e não apenas formalmente reconhecido), pois “de nada adianta o Estado garantir o direito à vida digna se não oferece uma estrutura razoável e adequada de saúde pública a todos de forma indistinta e gratuita” (1), a Constituição Federal criou o SUS, regulamentado pelas Leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90 (Leis Orgânicas da Saúde).
A jurista Mônica de Almeida Magalhães Serrano, destacando as diretrizes constitucionais do sistema público, afirma que o SUS “estabeleceu bases para um novo modelo de gestão da saúde pública no país, nasceu com o propósito de dar concretude ao direito à saúde, através da construção de uma rede pública generalizada e hierarquizada, de acordo com os princípios de universalização, integralidade da atenção, descentralização, participação social e igualdade no direito ao acesso de todos os cidadãos às ações e serviços de saúde, em todos os níveis de complexidade” (1).
Saúde é democracia
O Brasil adota o sistema hierárquico de leis, o que significa que há normas superiores e normas inferiores (que não podem contrariar ou limitar aquelas que lhes são posicionadas em nível hierárquico superior). A lei mais importante no país, isto é, hierarquicamente superior a todas as outras leis, é a Constituição Federal (2), que assim inicia suas disposições legais:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Em termos não jurídicos, o que a Constituição especifica é que as relações no Brasil são legitimadas através de leis, cuja função é propiciar a todos os cidadãos e cidadãs condições para viver com dignidade, e que essas condições devem ser estabelecidas através de representantes eleitos (ocupantes dos cargos executivos e administrativos do Estado) ou diretamente, com a influência direta desses cidadãos e cidadãs sobre as decisões do Estado, sem nenhum interveniente.
Especifica também que vivemos sob o regime democrático, que pressupõe a distribuição de forma igualitária dos direitos a todos e todas, e que representa o direito de participação das decisões pelos excluídos do sistema representativo – todas as pessoas que não exercem cargos executivos e administrativos do Estado.
Nesse Estado Democrático, um dos direitos a que todos temos igualdade no exercício é a saúde pública e gratuita, tratada na Constituição Federal entre os artigos 196 e 200, dos quais destaco:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – (…);
II – (…);
III – participação da comunidade.“
A participação social direta no SUS, desta forma, está apoiada na interpretação conjunta desses três artigos da Constituição Federal: artigo 1º e seu parágrafo único, artigo 196, e artigo 198.
Quando se afirma que a participação social no SUS se exerce exclusivamente através dos Conselhos de Saúde, conforme previsto na Lei 8.142/90 – hierarquicamente inferior à Constituição Federal – utiliza-se uma interpretação reducionista (ou seletiva) sobre as disposições legais de saúde.
A Constituição Federal admite a convivência entre a democracia representativa e a democracia direta, sem intermediários. Assim, a forma de participação social no SUS obedece a essa mesma lógica, o que permite aos usuários e usuárias do SUS participar das decisões de saúde através dos Conselhos de Saúde e também diretamente, por meio de qualquer ferramenta apta ao exercício do controle social. Com base na norma maior do Brasil, a participação social no SUS de forma direta é um direito, e o Estado brasileiro deve garantir os meios para que isso ocorra.
No atual cenário brasileiro de crise do sistema representativo, em que o processo eleitoral admite o financiamento privado de campanhas políticas por empresas transnacionais, a participação social de forma direta no SUS é também uma maneira de preservar os valores democráticos, garantindo que as decisões e leis referentes ao sistema público de saúde correspondam aos anseios da população brasileira, bem como aos fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Isto porque os representantes eleitos, quando financiados por empresas privadas, mantem durante o seu mandato o contato estabelecido com elas na ocasião da campanha, enquanto o resto da população não consegue tão facilmente esse acesso direto aos candidatos que elegeram com seu voto. Excluindo-se algumas exceções, há contato direto entre políticos e empresas privadas, mas não entre cidadãos e seus representantes.
Segundo o relatório “Representação política e interesses particulares na saúde” (3), de Mário Scheffer, do departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e de Lígia Bahia, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as doações de empresas de planos de saúde, no total de R$ 54,9 milhões, ajudaram a eleger 131 candidatos e candidatas no Brasil em 2014, dentre eles e elas a presidenta, três governadores, três senadores, 29 deputados federais e 24 deputados estaduais.
Muitos veículos de comunicação tem seus espaços publicitários – fonte de renda desses serviços e cujo valor pode ultrapassar o milhão – preenchidos por anúncios de empresas privadas de saúde, o que explica a exposição insidiosa de mazelas do sistema público de saúde e a total invisibilidade de práticas exitosas do SUS em suas manchetes. O que esses veículos de informação (selecionada) fazem, na verdade, é vender o povo brasileiro às empresas transnacionais de saúde privada, às custas do enfraquecimento da saúde pública de qualidade.
Nesse sentido, a utilização de redes sociais como facebook e twitter como instrumentos de criação e de debates de políticas públicas de saúde seria mais útil a toda a coletividade do que o atual uso somente como espaços informativos de atividades pessoais cotidianas. A saúde alimentar através da proibição de uso de vevenos e agrotóxicos no Brasil teria efeitos mais abrangentes se debatida no facebook e no twitter, no lugar de postagens e fotos sobre o cardápio do dia do usuário ou usuária da rede.
Daí a importância de se manter e criar ainda mais espaços de comunicação social que valorizem a saúde pública, que propiciem condições para que todas as pessoas possam influenciar a criação de leis que protejam e ampliem os direitos associados a saúde pública, bem como para a participação direta de todos nós cidadãos e cidadãs nas decisões do SUS, como ferramentas de controle social e de efetivação da democracia participativa que são. Porque esta é a única maneira de garantir a ordem constitucional de proteção à saúde enquanto dever do Estado Brasileiro.
Cito aqui dois exemplos na área de diabetes: a campanha do grupo Blogueiros de Diabetes pela obrigatoriedade do teste de glicemia em hospitais e prontos-socorros (4), em que se inspirou a Deputada Benedita da Silva para a propositura do Projeto de Lei nº 6.769/2013, entre outras iniciativas legislativas em todo o Brasil; a campanha do blog Diabetes e Democracia para participação em massa da sociedade civil, incluindo entidades médicas, na consulta pública para incorporação dos análogos de insulina ao SUS, com texto de lançamento publicado aqui na Rede HumanizaSUS (5), que resultou em 100 páginas (diabetes tipo 1) e 40 páginas (diabetes tipo 2) de contribuições com manifestações a favor e contra a proposta, colocando em pauta para debate na sociedade a questão da atualização do protocolo do SUS em diabetes.
Outra ferramenta que tem servido de disseminação do conhecimento e participação social são sites como a Rede HumanizaSUS, uma rede de colaboração, que possibilita o encontro, a troca de conhecimento e experiências sobre assuntos ligados ao SUS, com a participação de qualquer um na produção de saúde pública.
Cabe ao Estado garantir que esses espaços existam. Mas, se o Estado privilegiar os espaços representativos e a participação na saúde através de processos burocráticos, cabe a nós cidadãos e cidadãs buscar nossas próprias formas de participação social direta no SUS. Como diz a música “Tudo de novo” de Caetano Veloso:
“Minha mãe me deu ao mundo
De maneira singular
Me dizendo a sentença
Pra eu sempre pedir licença
Mas nunca deixar de entrar”
Referências:
(1) Serrano, Mônica de Almeida Magalhães – O Sistema Único de Saúde e suas Diretrizes Constitucionais, 2ª. Ed., São Paulo, 2012, Verbatim
(2) Constituição Federal de 1988: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
(3) Relatório “Representação política e interesses particulares na saúde” disponível para baixar em: https://www.scielo.br/pdf/icse/v15n38/30.pdf
(4) Assista ao vídeo da campanha através do link: https://www.youtube.com/watch?v=LNwHWtYwdks
(5) Link do texto “Somos 12 milhões de motivos não teóricos para a incorporação dos análogos de insulina ao SUS” publicado aqui na Rede HumanizaSUS e em outras redes sociais: https://redehumanizasus.net/81065-somos-12-milhoes-de-motivos-nao-teoricos-para-a-incorporacao-dos-analogos-de-insulina-no-sus
Por Cláudia Matthes
embarquei no SUS pela trajetória das experiências de vida. Vivenciei um SUS menino, moleque, mal educado. E, vivi nas encruzilhadas de colocar o SUS, do mapa para o território.
Conferência é festa de democracia!
Bora lá!!!
Se puxar,
bjus
com carinho
Cláudia