Para quem já está acostumado, junto aqui, disjuntando sem tornar desconexos, e procurando contribuir com algo novo, sem destruir o velho, dois posts sobre a Páscoa. O do magistral Erasmo (https://redehumanizasus.net/94265-entre-a-mistica-e-a-realidadeuma-feliz-pascoa) e o do não menos magistral Marcos Pires (Jesus e a Vida: Diversidade e Unidade). É que há controversas no que é sempre e deverá ser sempre conversa.
Junto aos dois minha ótica religiosa desviante e minha própria compreensão das coisas. Se é que posso chamar de própria alguma coisa, já que me aproprio, distorcendo, como um verdadeiro perverso polimorfo, os prazeres modelados em outras modelações de mundos possíveis e incompossíveis.
Vamos à empreitada, instigado por estas duas formas de analisar a questão. Deixarei de lado, por enquanto, e se não me pedirem o contrário, a questão dos “ovos de Páscoa” e da aparente doçura que isto representa em algo que, nada doce, fala de martírio, de crucificação e de culpa. Na Páscoa que nos impõem não celebramos verdadeiramente a vida, a vida cotidiana, mas uma vida que, sacrificada, nos culpa por uma vida que deveríamos ter e que, por “escolha” e “erro” dos nossos ancestrais, nos trouxeram para baixo, num baixo que nunca cessa de nos rebaixar a mais baixa da má consciência.
Aonde a asserção: “vim para que todos tivessem vida e vida em abundância” não daquele que estava na cruz em agonia, mas que, mesmo vendo a cruz, não fez dela seu baluarte de culpabilização e de ingratidão?
Tomando a coisa simbolicamente, sem preocupação com religiões estabelecidas e cânones da verdade absoluta, ouso uma outra visão das coisas.
Volto-me e foco o julgamento, deixando de lado, sem deixar, tudo o que veio antes dele e que levou a ele, não porque o réu fosse culpado, mas porque o réu, assim decidiram, era culpado de qualquer culpa ou desculpa. Ele era não só o escolhido do Pai, mas também o escolhido do pai. Gaia e terra se juntaram na materialidade de algo que, só por tabela, remete a algo para fora desta materialidade, se é mesmo que remete.
Saiamos do transcendental e do divino para habitarmos o fatídico de humanos demasiadamente humanos. Afinal, trata-se do eterno entrando no tempo e não do tempo de uma eternidade. Enfim, o eterno adentrando o tempo corresponde a algo que chamaria de, por falta de palavras, uma mística materialista. Deixemos, pois, de lado a transcendência e analisemos a materialidade dos fatos.
Cristo era culpado e pronto! Já estava dado, tanto mais que ele não era mais visto como uma identidade, mas como um ícone da perdição: nem Jesus, nem Joshua, mas um enigmático INRI.
A empáfia da pergunta inescrupulosa e maldita de Pôncios Pilatos sobre o que é a verdade fica sem resposta. Pilatos lava as mãos como, se assim, ele se tornasse limpo. O “nada encontro neste homem é” como: sou obrigado a julgá-lo por vocês, já que a justiça, sempre cega e surda, só vê e escuta aquilo que interessa.
Há Barrabás e há Cristo e, entre os dois, o aparente e sequioso desejo de poder de um magistrado que, antes que afirmar sua saliva carniceira, faz dela o banho sobre um povo que, cego de ódio, decide não com autonomia, mas numa carniçaria da qual ele, povo, era a principal mercadoria.
Enfim, está ali o julgamento entre o amor e o ódio. O ódio de Cesar é cínico o bastante para perguntar, induzindo a resposta, qual dos dois vocês preferem. O “povo” grita Barrabás, como se estivesse realmente numa livre escolha. Pilatos lava as mãos, as mesmas que condenavam antes o que queriam condenado depois.
Saiamos, pois, das pessoas e de suas histórias particulares, porque o julgamento era entre o ódio e o amor, entre o poder e a potência, entre o fato e o possível. A resposta, “autônoma como qualquer corrente invisível” vem inquestionável: queremos Barrabás, solte Barrabás!
Barrabás foi solto e as ondas de ódio andam soltas. Esta a mística! O ladrão de fato, Barrabás, solto, agrilhoava o suposto ladrão, Cristo, condenado, embora não se soubesse e não se conseguisse afirmar o porquê deste encarceramento. Mãos lavadas, a voz do povo era a voz de Deus e, isto, num Império!
Esqueçamos, mais uma vez, as pessoas e quem elas são ou pretensamente podem ser. No jogo dos fatos sem fatos, o amor é condenado a amargar a cruz, enquanto o ódio, perdoado, é liberto para acorrentar a vontade.
Enfim, sobre os mais terríveis e escabrosos suplícios, diga-se de passagem, tortura de um militarismo/judiciário cínico, o amor é levado e pregado numa cruz. São braços e pernas esticados e presos, numa desqualificação espinhenta de um reinado que não pode ser levado a sério. O filho do carpinteiro, destituído de sua pessoa, é elevado à condição de Rei sem reino, de rei usurpador de um reinado que não lhe pertence. Afinal, como pode um ser ínfimo, saído da lama, sem instrução, filho ilegítimo do poder social, ousar se declarar rei dos pobres? Ainda que nunca o tenha feito.
Crucificamos o amor, enfim, e se ele está lá, crucificado, não é porque esteja lá, é porque assim o queremos. Ele tinha que ressuscitar de alguma forma, ele tinha que morrer de alguma forma, ele tinha que viver, como a imanência, de alguma forma.
Misticamente, portanto, a páscoa significa a possibilidade de rever o processo e descrucificar o amor. Significa, não conduzir Barrabás para a cruz, mas reinventar a vida de tal forma, “a vida em abundância”, que deixe de lado a cruz para sempre.
Relembrar e cultuar Cristo na cruz, é, para mim, perpetuar o martírio e desculpar-se perpetrando a culpa. Tiremos pois o amor da cruz, sem que seja preciso gritar “prisão a Barrabás”. Porque, misticamente, Barrabás e Cristo são apenas dois lados de uma mesma mundaneidade que não se polariza, mas se diferenciam em binários que não se anulam, para separarem o que não pode estar separado.
Cristo Rei, Cristo ladrão é uma e só a mesma pessoa. Ladrão do instituído, rei do instituinte e, no limite, um amor igualitário e, por que não, comunista ou comunitário que nos diz: “quando os homens calarem as pedras gritarão”.
Enfim, esta a mística, este o possível ensinamento.
Tornemos sempre e cada vez mais desnecessária toda e qualquer via crucies.
“Amar a todos como a si mesmo”, sabendo que este “si mesmo” não é um eu egóico, mas uma subjetividade viva e abundante. Não um Eu, não um Deus Eu, mas uma abundância de vida na imanência na qual Deus e Eu se resolvem no julgamento de um mundo sempre por se fazer. Uma comunidade por vir.
Herética, torta, desviante, perversa, esta a minha mística, este o meu jeito todo próprio de amar o que chamam, em qualquer matiz, um Deus. Isto para mim é a Páscoa que elimina qualquer necessidade de uma sexta da paixão.
Um Deus que dança e sabe dançar comigo, um deus que me completa na forma como ele me ensina a dançar com ele e respeitar toda e qualquer forma de vida. Um Deus Amor. Morto e crucificado, mas que, paradoxalmente, vive e ressuscita ao terceiro dia de minha falta de memória, da minha funesta mundana hipocrisia e mentira.
Um Deus amor vivo e que me faz viver e que, ainda que sob o grito de “solte Barrabás”, se deixa crucificar porque sabe que ainda não chegou a hora: “eu vim para que todos tenham vida. Vida em abundância”.
Enquanto houver falta, enquanto houver um único condenado pelos gritos do ódio, o amor não se deixará retirar da cruz.
A cruz vazia é o máximo símbolo do amor vivido, do amor efetuado.
Esta a minha cruz!