Sobre as recentes declarações do Ministro da Saúde de Temer em favor de mais planos de saúde e menos SUS
É incrível e nesse caso muito triste como a realidade se impõe. E a realidade é que a saúde, como quase tudo, é mais um campo de disputa constante entre dois projetos de assistência, de país, de sociedade.
Não é de hoje que se fala em Cobertura Universal de Saúde (CUS), o que é bem diferente de Direito Universal à Saúde ou Acesso Universal à Saúde, que é o que nossa constituição escolhe. A ideia do projeto de CUS me parece muito simples, apesar de algumas variantes em cada lugar: garantir a todo mundo um seguro de saúde (eventualmente até público) e a quem não conseguir pagar, um sistema público residual. A rede fica então quase toda privatizada. Essa ideia é a grande aposta da OMS e foi comprada pelo Banco Mundial e pelo FMI já há algum tempo. Falando assim até parece algo legal, não é!
Os planos de saúde brasileiros são recordistas em perder ações judiciais. Em geral são demandas de seus clientes para a cobertura de procedimentos para si e para seus familiares que o plano não quer cobrir. A coisa é tão escancarada que mais de 80% dessas ações são julgadas CONTRA os planos no Tribunal de Justiça de SP (perceba, não falei tribunal popular ou comitê judicial bolivariano, falei TJSP, quem conhece sabe que de progressista não tem quase nada). Como se não bastasse isso, uma pesquisa recente do Datafolha escancara que o avaliação média dos consumidores quanto aos planos é pior do que a avaliação do próprio SUS.
Não sendo suficiente a qualidade do atendimento (e isso já deveria ser, estamos falando da vida das pessoas), a saúde privada é mais cara. Não é à toa que países como os EUA gastam muito mais em saúde de seu PIB. Da mesma forma, não é à toa também que, relativamente, a saúde privada consome muito mais recursos no Brasil que a pública e atende muito menos pessoas, ainda contando com o SUS para procedimentos complexos e sem fazer o devido ressarcimento previsto em lei ao sistema público.
E sinceramente, faz todo sentido que a saúde privada seja mais cara: prevenir sai mais barato, apostar em promoção da saúde é mais barato, tentar apreender com o modo de vida das pessoas para promover sua saúde e não força-las a se adaptar a uma lógica de hospitais e medicamentos, ainda que desnecessários, é muito mais barato (e muito mais humano). E, além disso, muitos procedimentos serão caros, claro, mas querendo ou não, não vemos com frequência no Brasil, a grave questão social e econômica de famílias que se endividam muito mais do que poderiam por conta de uma doença grave em um familiar (não to falando que não acontece, mas não no nível de um país como os EUA).
O SUS se assenta sobre premissas de atendimento integral e de participação social. Isso pode significar muito coisa e também é um campo em disputa, mas certamente é uma proposta contrária a essa barbárie privatista que estão desenhando para o Brasil há bastante tempo. Não há muito como controlar a iniciativa empresarial. Mesmo com regulação, as práticas, as diretrizes, os procedimentos ficam muito a cargo da empresa, até por algumas práticas muito melhores para as pessoas (parto normal ou desfarmaceuticalização, por exemplo) serem bem menos lucrativas.
Muito por isso, o movimento da Reforma Sanitária, que acabou criando o SUS, lutou justamente para superar um modelo parecido com esse. Nós já tivemos no Brasil, durante a ditadura militar, um modelo que vinculava assistência à saúde à carteira de trabalho (que aliás, vejam só, hoje é uma ideia que tentam fazer voltar em uma PEC proposta pelo Eduardo Cunha). Desde que a saúde virou direito, em 1988, progredimos, em todos os termos, existem vários indicadores mostrando isso. E, por favor, não estou falando que está tudo bem, ainda falta muito mesmo e principalmente, falta dinheiro.
Nosso Ministro da Saúde, aliás nosso não, esse ministro aí responde a essas questões da pior forma possível: estímulo ao aumento do sistema privado (contra a lógica universal do SUS), regulamentação via ANS para dificultar a vida de quem é cliente desses planos na hora de ir ao judiciário, nenhuma resposta concreta em relação ao lobby que a saúde sofre (só um “vamos ver o que dá pra fazer”) e citando como referência política sobre a Constituição ninguém menos do que José Sarney. Atrelado a isso tudo, o plano do Ministro do Planejamento de tirar ainda mais dinheiro do SUS.
A quem achou que o o sujeito da oração “nós não vamos pagar o pato” incluía a si, a ilusão deve ter sido boa enquanto durou, agora que a resposta pelo fim da corrupção foi o fim da CGU; por mais educação, DEM no MEC; por mais saúde, isso aí, que possamos nos unir não para trabalhar, mas para lutar. Essas ideais privatistas só representam o lado que está por trás desse projeto excludente, sempre muito maior nas cifras e muito menor em gente.
Fontes:
–https://apps.who.int/…/…/10665/85761/26/9789248564598_por.pdf
–https://g1.globo.com/…/pesquisa-diz-que-93-estao-insatisfeit…
–https://www.abrasco.org.br/…/blog-da-saude-entrevista-mari…/
Por deboraligieri
Matheus querido.
Apesar dos 4 meses decorridos do seu primeiro post (e que primeiro post!), não poderia deixar de te dar as boas-vindas, e dizer o quanto me alegrou conhecer você, uma pessoa do Direito que busca mais justiça social! Somos muitos os companheiros e companherias nessa luta. E este é um espaço para construir narrativas como ferramentas do debate democrático da saúde.
E acho que sua análise das propostas do Ministro da Saúde (que avançaram na direção privatizante nesses 4 meses) fala justamente disso, sobre o que medidas como os “planos acessíveis” representam em termos de justiça social considerando o princípio constitucional da universalidade, e em termos de democracia considerando a diretriz constitucional da participação da comunidade no SUS.
Trabalhando na área de direito sanitário e utilizando serviços de saúde públicos e privados como paciente/usuária, percebi que não existe uma situação ideal em nenhum dos sistemas de saúde. Tanto o público quanto o privado tem suas vantagens e desvantagens, alguns serviços e atendimentos que funcionam bem e outros mal. Lendo o livro “Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde” (organizado por Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Graça Carapinheiro e Rosemarie Andreazza) percebi como fui (e ainda vou!) trilhando meus caminhos pelos sistemas público e privado de saúde de forma complementar para conseguir o atendimento integral à minha saúde. E muitas experiências relatadas neste livro coincidem com a minha. Fico pensando então que o grande desafio é encontrar formas de construir a real integralidade da saúde no Brasil – na minha opinião, o principal problema envolvido na judicialização da saúde – a partir de um sistema privado de saúde efetivamente suplementar, e não apenas suplementar no que gera lucro aos acionistas das operadoras de planos de saúde. E a criação de instrumentos e ferramentas para melhor funcionamento do sistema suplementar envolve a participação da comunidadena sua formulação, implementação e controle, o que não acontece atualmente, já que a ANS, na maior parte das vezes, consulta o próprio setor regulado para criar as normas reguladoras.
Somente com a participação da sociedade, e garantindo a saúde a todos os brasileiros e a todas brasileiras, é possível falar em justiça social e democracia participativa. Assim é possível viver o SUS constitucional. Sem a participação da sociedade e sem a garantia da saúde como direito universal (e não como mercadoria), não há SUS, não há democracia, não há saúde. Há barbárie, como bem apontado na nota da Abrasco!
Abraços,
Débora