“ONDE FALA A BALA, CALA A FALA”

10 votos
 
 
 
Querid@s da RHS, 
 
compartilho com vocês um diálogo entre amig@s sobre a bancada do Boi, da Bala e da Bíblia em Mato Grosso do Sul. Fragmentos da indignação em forma de texto de Simone Becker, Esmael Alves de Oliveira e meu. Há, também, outras versões com este título em circulação produzida por outr@s autores/amig@s. É nossa (e há muitos nós aqui…) tentativa de produzir um pouco de ar e novos possíveis para não nos sufocarmos.
 
 
Numa madrugada de julho/2015, em Dourados – MS, dentro de uma cara caminhonete, a travesti “Érica” foi morta com três disparos à queima-roupa por um garagista. Um disparo pelas costas nas costas, outro no peito e outro no rosto. O rosto é um dos lugares privilegiados para que simbolicamente a homofobia, a transfobia e o machismo marquem seus territórios. Eis a terra mais transfóbica do centro-oeste (1)  e a que mais mata homossexuais (2), não esquecendo as estatísticas que nos fizeram receber a primeira Casa da Mulher Brasileira. 
 
Em solo sul mato-grossense esse é um dos indicadores da intolerância e do ódio que verte seu sangue, tal como se marca a ferro e a fogo o gado, mas, é claro sem que esses objetos corporificados e generificados no feminino, como travestis, gays, transexuais, mulheres tenham o valor que o gado assume por aqui. 
 
Nossas lideranças no ranking das barbáries não se esgotam aí. Se falar de gênero é falar de etnia, raça e classe social, como nos ensina e motiva  Judith Butler, desde o dia 14 de junho de 2016 a bancada da Bala, do Boi e da Bíblia, com a passagem famigerada de Bolsonaro pelo Estado e suas falas de intolerância, os Kaiowá e Guarani foram alvejados por balas em verdadeiras emboscadas. É claro, nada que a mídia impressa e televisa local e nacional aborde de maneira menos compromissada com este seleto seguimento. São vários tiros pelas costas, em emboscadas de quem tem seus parcos meios de transportes queimados, com as estradas fechadas, inviabilizando o acesso ao auxílio e ao socorro. Há um boato de que não havia sangue no hospital público aos indígenas feridos, só a eles. Seria isso possível? Os tiros são no abdômen e no tórax, indistintamente em crianças e em adultos de ambos os sexos/gêneros. O que noticiam as mídias globais nacionais? Os policiais machucados de terras “invadidas” por índios vagabundos, alcóolatras, preguiçosos e etc. Eis uma vez mais os aprendizados de Butler para quem há vidas mais dignas de serem choradas e honradas do que outras. Aqui se diz, sem pudores que “Índio bom é índio morto” e/ou “um boi ou pé de soja vale mais que um índio”. 
 

A invisibilidade midiática, a seletividade das informações veiculadas, a desumanidade como são retratados os corpos das vítimas das diferentes violências – que tem em comum o ódio contra a diferença – nos faz pensar, para além da ideologia machista, heteronormativa, racista e sexista que predomina na sociedade brasileira, todo o aparato econômico por detrás de tantos atos de barbárie. A violência contra gays, travestis, mulheres, indígenas no Mato Grosso do Sul anda de mãos dadas com um capital econômico que dita a política do Estado. Tudo isso nos faz remontar à história do Brasil e pensar que a sociedade descrita com densidade por diferentes autores da literatura brasileira em tempos pretéritos, marcado pela política dos coronéis, dos senhores de engenho, como o contexto narrado por Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”, ainda não ficou no passado. O passado encontra eco e existência, por meio de práticas, discursos e representações, nas relações sociais sul-matrogrossenses. Numa representação nacional, que diz que o Mato Grosso do Sul, por meio do agronegócio, é o principal responsável pelo desenvolvimento do país – alguns afirmando que “literalmente” é a região que leva o país nas costas – , esquece-se à que preço tal “desenvolvimento” é tão ufanado. Um desenvolvimento à qualquer custo: à custo do Cerrado, bioma já em risco, à custo das populações indígenas, povos originários, que expulsos de suas terras, tem sua forma de vida devastada pela ganância dos grandes latifundiários. Ganância sem fim, que invisibiliza, violenta, cala, confina e mata. Cala cotidianamente. Mata se for preciso, mata como se abate um animal, mata com a certeza da impunidade, de uma conivência coletiva, da morosidade das instituições que deveriam resguardar, mas que se fazem calar diante do poder econômico e político ideológico do agronegócio. 

 
As notícias sobre os feridos e mortos indígenas seja nas disputas de terra, seja nas demais violações de direitos ecoam com certa frequência entre nós, sob as bênçãos de um Estado omisso porque racista. Existência que nem sempre é falada, por que falar é dar vida, é denunciar, é colocar em evidência o que é querem esconder. Mas que nem sempre é velada. Em alguns casos, é preciso manter a violência de modo disfarçado e silencioso. Em outros é preciso publicizar as barbáries para tornar o ato hediondo um caso exemplar – veja o genocídio dos Guarani e Kaiowá. Em se tratando de violências contra LGBTs, ninguém parece estar à salvo: travestis, lésbicas, gays, são permanentemente rechaçados. Há mais ou menos um mês, a mídia alternativa noticiou o caso de um casal homossexual expulso de lanchonete em Dourados a base de socos e tiros (3). O fato em si já causa perplexidade, mas não para por aí. A perplexidade aumenta ainda mais quando nos defrontamos com a indiferença dos outros clientes e funcionários do estabelecimento: diante dos “socos e chutes”, não houve quem interviesse! Assistimos a mesma conivência coletiva quando os comércios das cidades se fecham para venda de alimentos aos povos indígenas nos momentos de acirramento das disputas de terra. Atos que se consubstanciam enquanto estratégias práticas de um racismo de Estado voltado ao genocídio desses povos.
 

Em nosso entender, essa mistura de silenciamentos, indiferenças, medos e cumplicidades revelam muito das representações correntes na sociedade dourandense e que sustentam a ideologia da violência. Em nosso entender, essa mistura de silenciamentos, indiferenças, medos e cumplicidades revelam muito das representações correntes na sociedade dourandense e que sustentam a ideologia da violência. Algumas imagens são icônicas desse imaginário: a figura do desbravador/pioneiro (aqui muito associada aos migrantes do sul do Brasil que colonizaram a região), a figura do homem do campo (rústico, másculo, macho e “sistemático”), a figura do agroboy (jovens que pertencem às famílias ligadas ao agronegócio e que fazem questão de evidenciar o capital econômico e simbólico de sua condição). Todas essas imagens realçam e refletem o caráter machista dos imaginários e relações engendradas nessa região do Estado e que se, em si mesmas, não dão conta de todos os aspectos das violências que mencionamos, revelam por seu turno uma dimensão importante dessas relações violentas: a dominação masculina  – conforme nos aponta Bourdieu.

Em cena a necessidade de afirmar a masculinidade pelo uso da força, pelo abuso de poder, pela violência, pelo sadismo das relações que estabelece e busca estabelecer. Se a fala é um pressuposto de humanidade – lembrando que entre os Guarani e Kaiowá a fala é um dos princípios fundamentais de constituição da pessoa – há que se negar por meio da violação de direitos, da negação da cidadania e do acesso aos elementos/aspectos fundamentais da existência que constituem o jeito de ser de um povo, grupo, indivíduo, tudo o que possibilite que ele se torne pessoa, sujeito, humano. Portanto, uma das outras faces das diferentes violências contra grupos minoritários presentes no Estado é justamente a despersonalização, descaracterização, desumanização dos sujeitos e grupos. Aí passamos a entender o que já nos é comum e não deveria sê-lo; o confinamento dos Guarani e Kaiowá, o genocídio historicamente praticado contra eles, o homicídio violento de travestis, o espancamento de homossexuais, o estupro de mulheres,  a violência no trânsito, a prática dos rachas e etc. 

A monocultura de grãos empobrece não só o solo, mas produz uns tantos desertos para a invenção e expressão dos diferentes modos de viver e de ser. Uma das muitas questões para as quais buscamos construir uma resposta: até quando? Embora pareça que a sequência de barbáries e de violações de direitos não tenha fim, estamos acordad@s e apostamos que o coro dos que sabem que é urgente (re)aprender a viver (guiados pela pluralidade de cores e sentidos) ganha novas vozes.