DESENHO UNIVERSAL E ACESSIBILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NOS ESPAÇOS HOSPITALARES: Barreiras predominantes.
Sabe-se que os ambientes nos hospitais brasileiros são predominantemente inacessíveis para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, posto que não foram planejados para atender à todos que necessitam de atendimentos quando precisam recorrer aos serviços de diagnóstico, cuidado e tratamento em nível ambulatorial ou de internação, nada obstante a existência de instrumentos oficiais balizadores de parâmetros antropométricos de acessibilidade. Outro aspecto que muito dificulta o pleno acolhimento dessas pessoas nos ambientes hospitalares, remete ao despreparo dos profissionais de saúde para lidar com quem apresente alguma necessidade que fuja ao padrão que lhes é reproduzido nos conteúdos de ensino dos seus cursos de formação acadêmica.
Nessa perspectiva, raras são as instituições hospitalares brasileiras nas quais pessoas surdas podem contar com intérpretes de Libras, com a existência de sinalizadores para que elas se orientem com base na sua forma oficial de comunicação, além de equipes com algum componente profissional preparado para se comunicar utilizando-se da Língua de Sinais Brasileira. Deficientes visuais, da mesma forma, quando precisam de atendimento hospitalar, enfrentam muita dificuldade para se locomover devido à falta de sinalização sonora, de piso tátil, inexistência de placas sinalizadoras em Braile, além do enfrentamento do despreparo das equipes para lidar com suas necessidades específicas.
É importante destacar que o direito à saúde foi constitucionalizado em nosso país, pela primeira vez e expressamente, pela Carta Magna de 1988, de forma genérica, no artigo 6º, juntamente com outros direitos sociais, e, com detalhamento maior, nos artigos. 196 a 200, em que a saúde é prevista como direito de todos (obviamente pessoas com deficiência também estão protegidas) e um dever estatal. A atual Lei Maior apresenta um texto avançado ao determinar que as ações e serviços em saúde devem tratar da promoção desse direito, bem como de sua proteção e recuperação e que o acesso a tais benefícios deve ser universal e igualitário. De acordo com o pensar de Silva (2012), o direito à saúde, além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa consequência constitucional indissociável do direito à vida.
Está claro no texto de apresentação da Convenção da ONU sobre Direitos da Pessoa com Deficiência que Pessoas com deficiência são, antes de mais nada, pessoas, seres humanos. Pessoas como quaisquer outras, com protagonismos, peculiaridades, contradições e singularidades. Pessoas que lutam por seus direitos, que valorizam o respeito pela dignidade, pela autonomia individual, pela plena e efetiva participação e inclusão na sociedade e pela igualdade de oportunidades, evidenciando, portanto, que a deficiência é apenas mais uma característica da condição humana. Convenção esta que trata de direitos de 600 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a OMS. De acordo com dados do Censo 2010, 45 milhões de brasileiros declararam-se pessoas com algum tipo de deficiência. A Convenção é a oitava editada pela ONU e a primeira formalmente incorporada a Constituição do Brasil, com equivalência a emenda constitucional.
Como observam Barcellos e Campante (2012, p. 177), pautados na Convenção da ONU Sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, a mudança no paradigma da deficiência que retirou o foco do debate dos traços distintivos associados à deficiência para concentrá-lo nas barreiras sociais existentes para esses indivíduos, conduziu à percepção de que o conceito de acessibilidade é muito mais amplo do que o visualizado inicialmente. Nesse sentido, a acessibilidade abrange não apenas as estruturas físicas, mas também todas as demais esferas de interação social. A acessibilidade, em sua acepção moderna, pode ser descrita como a adoção de um conjunto de medidas capazes de eliminar todas as barreiras sociais – não apenas físicas, mas também de informação, serviços, entre outras – de modo a assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, às condições necessárias para a plena e independente fruição de suas potencialidades e do convívio social. Enfatizam esses autores que acessibilidade “é o mecanismo por meio do qual se vão eliminar as desvantagens sociais enfrentadas pelas pessoas com deficiência, pois dela depende a realização dos seus demais direitos”.
A definição de “Desenho Universal”, por sua vez, encontra-se contemplada no Artigo 2º desta Convenção da ONU, entendida como a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.
Contrariamente ao que dispõe a nossa Constituição e a própria Convenção da ONU, cadeirantes paraplégicos e tetraplégicos, muletistas e demais pessoas com mobilidade reduzida, enfrentam barreiras arquitetônicas diversas, impedindo-os da livre circulação nos ambulatórios e ambientes das unidades de internação. Com espaços sobremaneira limitados, não se podem fazer manobras básicas sem solicitar ajuda de terceiros, em decorrência da inadequada disposição do mobiliário e da inobservância aos princípios de desenho universal, como parâmetros antropométricos de acessibilidade para inclusão de pessoas com deficiência. Mesmo que a cadeira de rodas passe pelo vão da porta de entrada dos consultórios, quartos ou enfermarias, raramente, adentrará nos banheiros, terá acesso livre aos lavatórios, tampouco o cadeirante contará com espaço suficiente para manobras básicas da cadeira de rodas para a bacia sanitária, cadeira higiênica, área de banhos, etc., embora prevaleçam medidas padronizadas pela NBR 9050 da ABNT.
De acordo com as medidas antropométricas da NBR 9050/2004, para garantir a livre circulação de um cadeirante nos ambientes espaços hospitalares é preciso considerar que para alcançar uma rotação de 90º a área livre deve medir 1,20 m x 1,20 m. Para rotação de 180º é preciso contar com área livre de 1,50 m x 1,20 m, e as rotações de 360º requerem espaço livre com diâmetro equivalente à 1,50 m, em todos os consultórios, enfermarias e quartos, inclusive, no interior dos seus banheiros. Áreas de expressivo significado para que o cadeirante possa exercer seu direito de privacidade, autonomia e independência funcional.
Outro aspecto que merece registro pelos riscos que impõe aos clientes com mobilidade reduzida tem pouso no mobiliário. Dos consultórios ambulatoriais aos setores de internação hospitalar, as macas disponíveis para exames diagnósticos e de tratamento, são deveras estreitas e altas em demasia, por isso, inadequadas para a mobilização com garantia de segurança para cadeirante que careça ser transferido ou transferir-se para elas. Há casos de quedas com sérias complicações de comprometimentos ósseos, musculares e das articulações, exigindo outras intervenções, aumentando o nível de dependência funcional, sobrecarga de cuidados para as equipes e prolongando a internação. Um transtorno evitável, caso os ambientes, mobiliário e equipamentos estivessem adequados para atender às pessoas com ou sem deficiência. Como bem assevera Galdino (2012 p. 104), “O exercício das liberdades no caso das pessoas com deficiência culmina em um necessário direito à diferença, que é, em última análise, um redimensionamento do princípio da igualdade em nossos dias”.
Diante deste quadro marcado pela discriminação, gestão incompetente, inadequação dos ambientes e descaso para com as particularidades das pessoas com deficiência nos espaços hospitalares brasileiros, resta reconhecer que essas pessoas temam passar por diversos constrangimentos em momentos de maior vulnerabilidade a riscos que comprometam ainda mais suas funções físicas e sensoriais, qualidade de vida, saúde, autonomia e liberdade. Sem a humanização dos ambientes hospitalares não há razões para afirmar que compomos equipes de saúde, afinal, estamos destoantes dos princípios éticos balizadores dos nossos juramentos públicos, práticas e exercício profissional.
Considerando que maioria dos profissionais de saúde não aprendeu interagir com pessoas com deficiência na fase de formação acadêmica, razões para tamanho despreparo nos campos de prática hospitalar quando se deparam com essa clientela, agir com humildade e apresentar-se disponível para aprender com os mesmos e seus cuidadores domiciliares pode ser bom começo. São conhecimentos fundamentais para que se estabeleça relacionamento acolhedor, empático, favorável a reações positivas e desencadeadoras de recuperação, restabelecimento, equilíbrio e cura dessas pessoas, além de dar mais sentido aos saberes e fazeres dos profissionais de saúde atuantes nos serviços hospitalares.
Atendimentos hospitalares humanizados devem promover a saúde de todos que buscam seus serviços com expectativas de acolhida fraterna, ambientação segura, respeito indistinto, dedicação e cuidados de toda a equipe, para que as pessoas desfrutem de experiências favoráveis ao pleno restabelecimento das suas funções afetadas, ainda que em momentos vulneráveis ao desequilíbrio mental, emocional e existencial.
REFERÊNCIAS
Associação Brasileira de Normas Técnicas [ABNT]. NBR 9050: Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. Rio de Janeiro: ABNT; 2004.
Barcellos, Ana Paula; Campante, Renata Ramos. A acessibilidade como instrumento de promoção dos direitos fundamentais. In: Ferraz, Carolina Valença; Leite, George Salomão; Leite, Glauber Salomão; e Leite; Glauco Salomão. (Org.) Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo. Ed. Saraiva. 2012.
Galindo, Bruno. Direito à liberdade: dimensões gerais e específicas de sua proteção em relação às pessoas com deficiência. In: Ferraz, Carolina Valença; Leite, George Salomão; Leite, Glauber Salomão; e Leite; Glauco Salomão. (Org.) Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo. Ed. Saraiva. 2012.
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (BR). Coordenação-Geral do Sistema de Informações sobre a Pessoa com Deficiência. Cartilha do Censo 2010 – Pessoas com Deficiência. Brasilia: SDH/SNPD; 2012.
Silva, Roberta Cruz da. Direito à saúde. In: Ferraz, Carolina Valença; Leite, George Salomão; Leite, Glauber Salomão; e Leite; Glauco Salomão. (Org.) Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo. Ed. Saraiva. 2012.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Tradução oficial/Brasil. Brasília(DF): Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, set. 2007.
Por deboraligieri
Caro William.
Que beleza de debate você nos traz aqui, e com uma argumentação ricamente fundamentada! Não conhecia o termo “desenho universal”, obrigada pelo aprendizado! Pensar na inclusão como o direito à diferença enquanto desdobramento do princípio da igualdade é também lutar contra inquidades, valorizando a equidade. Já ouvi e li muitas vezes (talvez até mesmo em algum de seus posts) que quando o ambiente não é adaptado para pessoas com deficiências, o local é deficiente, e não a pessoa. E seu texto mostra bem o quanto é antijurídica e desumana essa situação, tão comum em ambientes de saúde, nas redes pública e privada de atendimento.
De fato, muitos profissionais de saúde não recebem treinamento para lidar com as diferenças, ou seja, não entendem e não apreendem o ser humano como dotado de singularidades, nem sempre enquadráveis nos padrões definidos como normais. Este é um reflexo da sociedade capitalista que elege padrões de normalidade como forma de inclusão e de exclusão de pessoas, e da aproximação ou distanciamento delas das oportunidades sócio-econômicas e do gozo de direitos.
Na verdade, boa parte de nós é ignorante em relação às necessidades das pessoas com deficiências. Certa vez meu companheiro, ao tentar ajudar um cego a atravessar a rua, foi seriamente repreendido porque não perguntou ao rapaz se ele precisava de ajuda, e porque pegou em seu braço sem avisá-lo, assustando-o. Este episódio foi bastante didático para nós, pois começamos a imaginar como é mesmo assustador, mesmo para quem vê com os olhos (os cegos enxergam através de seus outros sentidos), ser abruptamente puxado pelo braço no meio da rua. Percebemos o quanto precisamos aprender sobre as pessoas com deficiências, e que, na dúvida, melhor mesmo é perguntar a elas o que fazer para ajudar, e se for preciso.
Assim, seu post é uma bela reflexão acerca da necessidade de adaptação não só dos ambientes, mas também dos profissionais de saúde e da sociedade em geral, para que os direitos sejam efetivamente extensíveis a todas as pessoas no Brasil. E podemos comemorar a percepção dessa necessidade através de um recente vídeo do ICICT-Fiocruz, com um rico debate sobre o conflito público x privado nas políticas de comunicação, saúde e informação, traduzido no local para a LIBRA (embora o vídeo em si não tenha essa tradução): https://www.youtube.com/watch?v=gc6NKlyfU0U&t=2090s
Abraços,
Débora