Trabalho realizado por Nayara Maria, relacionado a estágio em CAPS no Internato em Saúde Mental do Curso de Graduação em Medicina da Universidade Federal de Alagoas, sob supervisão do professor Sérgio Seiji Aragaki.
A luta antimanicomial no Brasil tem início com o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, o qual discutia a eficiência do sistema vigente. O avanço dos estudos e a contribuição dos congressos de psiquiatria e psicanálise que ocorreram em 1978 contribuíram para o despertar da necessidade de novas abordagens na assistência psiquiátrica. Até 1993, podemos registrar movimentos como o Manifesto de Bauru e a Articulação Nacional da Luta Antimanicomial, que marcaram uma atitude política que tenta destruir os velhos conceitos de loucura e suas consequências. Assim, surge uma tentativa de lutar contra a organização social que o manicômio sustenta.
Em prol de um maior entendimento do valor social da doença psiquiátrica, trago um depoimento pessoal de Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz: “ (…) então loucura se refere a esta experiência humana de estar no mundo de uma forma diversa daquela que o homem, ideológica e idealisticamente, considera como normal. E louco é o sujeito destas vivências (“erlebenis”) e destas experiências. (…)”.
No curta “Em nome da razão”, há a exposição do manicômio como uma contenção física de tudo aquilo que não é entendido ou aceito na sociedade. Há o maniqueísmo do “aqui dentro loucura, lá fora razão”. Partindo do pressuposto que o paciente, uma vez dado como psiquiátrico, perde sua humanidade. Não é permitida ou desejada sua participação social.
Inúmeros são os relatos de famílias que buscam a internação psiquiátrica como forma de limitação ou até castigo. Mas tal atividade é reflexo de um contexto cultural marcado por preconceitos e disseminação de inverdades. O paciente, por sua vez, é visto como violento e imprevisível. Entre o temor e o desinteresse, resta ao portador de doença psiquiátrica sobreviver a indiferença. O hospital psiquiátrico impede que ele seja visto ou escutado, fazendo, por fim, com que seja esquecido.
Uma vez estigmatizado como “louco”, o paciente perde qualquer direito humano. Todo seu discurso, mesmo que em forma de queixa física, será visto como patológico. No curta, o paciente afirma “precisar de médico oculista” e alega não ser visto por um médico de verdade. Questiona-se, então, se não houve a perda do olhar clínico. Há, por muitas vezes, a falta de investigações orgânicas relacionadas ou não aos sintomas psiquiátricos.
O sistema manicomial é falho mesmo quando se trata do tratamento farmacológico da patologia psiquiátrica. A famosa terapia de choque foi uma base deturpada dos estudos de eletroconvulsoterapia. O seu uso tinha caráter mais punitivo que científico, já que o paciente era “tranquilizado” pelo resultado dos danos cerebrais causados durante o processo.
Ainda falando de tratamento, mas desta vez no enfoque comportamental, podemos citar quatro pontos. O primeiro é referente aos pacientes que não tinham real indicação de internação. Temos como exemplo mais claro e marcante a homossexualidade, a qual até pouco tempo atrás era vista como patologia pelo DSM. A “patologização” de comportamentos fora do padrão faziam com que as instituições recebessem semanalmente “remessas” de pessoas. O segundo ponto trata da ausência do caráter terapêutico, já que o hospício é visto como medida de contenção. Não havia preocupação com as atividades que o paciente iria desenvolver ao longo do dia, resultando no ócio constante seguido de já esperada irritabilidade.
O terceiro ponto é a ausência da individualidade. Não espaço para o “eu” do indivíduo, apenas para sua patologia de base. Toda a bagagem cultural e detalhes de sua história são postos em segundo plano, já que se enxergava a doença como fator incapacitante e predominante. A falta de estímulo nos leva ao quarto ponto: perda de perspectiva. O paciente não enxerga estímulo para aderir ao tratamento, uma vez que muitas vezes não entende ao que está sendo submetido.
Uma vez entendida a dimensão sociocultural do problema, justifica-se a série de questionamentos feitos por profissionais da saúde em relação ao sistema manicomial e compreende-se o porquê da necessidade da Reforma Psiquiátrica como articulação de movimentos, atores, conflitos e ampliação do objeto de conhecimento.
Como conquista mais relevante, temos a lei número 10.216 publicada em 2001 e que consiste na atenção holística as pessoas com necessidades relacionadas a transtornos mentais como depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, incluindo aquelas com quadro de uso nocivo e dependência de substâncias psicoativas (álcool, cocaína, crack e outras drogas). Esse instrumento jurídico garante direitos humanos básicos ao paciente – proteção contra exploração, direito a atendimento médico, tratamento menos invasivo, respeito a doença e reinserção à sociedade-.
Dentro desse novo contexto, a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) vem como reformulação das propostas terapêuticas, tornando-as acessíveis, eficazes, resolutivas e humanizadas. O RAPS é constituído por: CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), em suas diferentes modalidades, Serviço Residencial Terapêutico (SRT), Unidade de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil), Enfermarias Especializadas em Hospital Geral, Hospital Psiquiátrico, Hospital-Dia, Atenção Básica, Urgência e Emergência, Comunidades Terapêuticas e Ambulatório Multiprofissional de Saúde Mental.
Ainda marcada por caráter transitório, ressalta-se a existência de uma estrutura que visa abarcar os pacientes “crônicos” dos manicômios (seja por uma doença grave ou uma família ausente). As casas terapêuticas consistem numa possibilidade de moradia para os pacientes que já sofreram com o abandono familiar e não tem para onde retornar.
Além disso, como criação de um fluxo em caso de sintomas agudos exacerbados, surgiu as enfermarias especializadas em hospitais gerais. O intuito é reverter o quadro agudo (principalmente o psicótico) e depois encaminhar esse paciente a um CAPS para atendimento continuado. Tal medida permite o encurtamento do período de internação, já que ela está restrita a exacerbação dos sintomas agudos. Além disso, evita a perda do olhar clínico e da procura de causas ou complicações orgânicas. Esse tipo de serviço também impede internações sociais, principalmente quando marcadas por caráter sociocultural, o que no filme é retratado como “coerção do sistema”.
Há, ainda, obstáculos a serem superados perante a luta antimanicomial. Um dos principais pontos é a dificuldade de articulação dos diferentes protagonistas desse movimento (governo, profissionais da saúde, usuários e familiares). A segunda dificuldade está na criação efetiva de um fluxo na saúde mental. Muitos profissionais ainda não sabem manejar surtos psicóticos ou paciente com persistência de sintomas. Por fim, por se tratar de um tema delicado, há pouca divulgação midiática e engajamento popular. Dessa forma, ocorre a permanência do maniqueísmo social.
Como ação a longo prazo, reitera-se a importância da educação sobre saúde mental em escolas de saúde. Uma educação focada no tratamento farmacológico associado a terapêutica multidisciplinar é ponto chave para a desconstrução desejada.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Cara Nayara,
Que bela narrativa histórico-política desta experiência existencial humana nem sempre compreendida. E porisso tratada como se doença fosse e das mais estigmatizadas.
Mas sempre há quem cultive a sensibilidade de ultrapassar o imediatismo de certas “verdades” e a chegada a outros territórios existenciais possíveis.
O nosso SUS que dá certo é um desses lugares de potência que permitem a abordagem desta realidade sob outros olhos.
A Reforma psiquiátrica foi e ainda é um espaço de sensibilidade e criação a ser cada vez mais garantido como potência em ato, possibilidade de vida.
Um grande AbraSUS!