Carta à Paulo Freire: esperançar é preciso

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Em homenagem aos 100 anos de Paulo Freire, compartilho esta carta que gostaria de ter-lhe escrito, ainda quando era vivo fisicamente, para expressar a minha gratidão pelo legado pedagógico deixado que muito contribuiu para o meu aperfeiçoamento enquanto professora e enquanto assistente social.

 

Prezado Paulo Freire,

Sem sombra de dúvida, um dos dias mais felizes da minha vida aconteceu em meados da década de 80, quando tive a oportunidade de assisti-lo numa palestra em Teresina (PI), com a abordagem da Educação Popular. Uma palestra que tinha como público alvo os professores e os militantes dos movimentos sociais.

Cheguei bem cedo no auditório do DNOCS, local da realização da palestra, com a intenção de sentar-me bem na frente para ficar bem próxima de você e não perder uma só palavra da sua explanação. Na realidade, queria ser a primeira da fila, tamanha era a minha admiração pelos seus pressupostos teóricos, pelo seu método de ensino centrado na pedagogia popular, mas qual não foi a minha surpresa na chegada ao auditório, as três primeiras fileiras já estavam ocupadas. Sentei-me na quarta fileira e rapidamente o espaço lotou. Ficaram diversas pessoas sentadas no solo, pois as cadeiras existentes não foram suficientes para acomodar todos os participantes.

Quando você adentrou a sala foi ovacionado com palmas e gritos. Tal era a satisfação dos presentes com a sua ilustre presença. Assisti-lo fisicamente foi um privilégio para todos os participantes.

A sua fala foi mesclada de informações sobre o seu exílio no Chile e sobre o seu método de educação popular para a classe oprimida. Durante todo o evento fiquei como que hipnotizada pela eloquência da sua fala e pela metodologia de ensino abordada. Um método de alfabetização que parte de uma leitura da realidade do aluno para chegar à palavra contextualizada com a sua história de vida. Uma pedagogia que resgata a humanização, a libertação e a cidadania das pessoas.

Neste contexto, você fez um questionamento sobre a prática recorrente da maioria dos professores no processo da alfabetização no que tange ao emprego de palavras fora do contexto do aluno como é o caso de “avião”, “uva”, dentre outras que não fazem parte da realidade da maioria dos alfabetizandos. Sabe-se que muitos residem na zona rural e, via de regra, não têm tanto interesse em aprender palavras de um universo que não lhe pertence.

Na sua fala ficou patente a importância do professor conhecer a realidade do aluno para o planejamento de uma alfabetização adequada às suas necessidades, que valorize o saber e o contexto social em que vive. Ou seja, a necessidade do professor assumir uma pedagogia com uma consciência crítica e sedimentada na realidade social do sujeito. Neste contexto, é preciso saber que tipo de homem o professor quer formar, se um homem crítico que seja capaz de se transformar, de mudar a sua realidade social ou um homem passivo, neutro. Se o professor opta pela formação de um homem com consciência crítica, o seu método pedagógico deve contemplar uma educação transformadora e libertadora, que contribua para o sujeito “ser mais.”

Suas reflexões, seus pressupostos teóricos ficaram carimbados em mim. E à medida que eu o ouvia sem “bater as pestanas”, surgia interiormente um desejo de voltar à sala de aula como professora para vivenciar essa experiência transformadora. Assumir uma turma de alfabetização com adultos para trabalhar o método Freireano passou a ser minha meta.

No ensino médio, cursei a Escola Normal em Floriano (PI), cidade que nasci, e  a partir de então trabalhei como professora durante 4 anos no Estado do Maranhão concomitantemente com a Faculdade de Serviço Social que cursei neste período. Entretanto, fazendo uso de uma metodologia bem distante do seu método Freireano. Uma metodologia “bancária”, excluindo a participação crítica do aluno, ainda presa no método autoritário que eu aprendi no ensino médio, que era esvaziado de uma consciência crítica, de uma construção cidadã.

A sua pedagogia me inspirou e contribuiu para a mudança da concepção de ensino, de mundo, de metodologia pedagógica e me fez retornar à sala de aula. Igualmente, ela serviu de inspiração para eu repensar também a minha práxis profissional enquanto Assistente Social no trabalho em saúde, produzindo mudanças na forma de olhar e de atender o usuário, que também tem um saber próprio e uma realidade social que devem ser considerados no atendimento. Valores estes incorporados anos depois pela Política Nacional de Humanização no cuidado em Saúde nas suas diretrizes.

E voltando à palestra, o certo é que saí de lá muito inspirada pela sua fala e com o desejo de retornar a sala de aula como professora. Queria ter a oportunidade de fazer diferente. E assim, em 1985 me submeti a um concurso para professor do Estado do Piauí, fui aprovada e desta forma tive a oportunidade de retornar ao magistério, e dessa vez, com uma visão diferente de mundo, de sujeito, buscando um alinhamento com os seus pressupostos pedagógicos.

Em 2001, fiz uma especialização na área da educação na UESPI, onde tive uma disciplina que me possibilitou um estudo mais ampliado sobre a sua pedagogia, o que agregou mais conhecimentos na minha formação e na qualidade do meu trabalho enquanto professora e Assistente Social.

Vale ressaltar ainda a importância do seu legado na educação popular no território do SUS. Seus ensinamentos, ao longo destes anos, têm inspirado inúmeras iniciativas de educação em saúde que vem sendo implementadas na saúde pública por este Brasil afora. A Rede HumanizaSUS está recheada delas.

Inspirada nos seus ensinamentos que muito ajudaram na minha trajetória profissional, e no Curso 100 anos de Paulo Freire que estou fazendo, deixo aqui este poema!

 

100 anos de Paulo Freire: esperançar é preciso

De palestra em palestra

ricamente é desvendado

o potente legado

por Paulo Freire deixado

 

Nas potentes discussões

a gente se contagia

com a sua pedagogia

método vivo de cidadania.

 

A Pedagogia do Oprimido

traz o poder da re-existência

o resgate da consciência

descoberta no homem a sua potência

 

Na  educação popular

através da conscientização

descobrimos nossa humanização

mediatizada pelo diálogo e comunhão.

 

Esperançar é preciso

um mundo cidadão

sem nenhuma opressão

com liberdade e educação

 

Teresina, 21 de agosto de 2021

Autora: Emília Alves de Sousa