Mesmo com todo apoio e conquistas da medicina na área psiquiátrica, a vida de um paciente de esquizofrenia não é fácil. Vou tentar relatar o meu dia a dia e minha experiência como portador de transtorno esquizoafetivo, um tipo de esquizofrenia com viés de bipolaridade.
Minha experiência com surtos psicóticos vem de longa data, desde a minha infância, com uma história familiar. Meu pai, e a mãe dele, também tinham o diagnóstico de esquizofrenia, numa época em que a medicação era ainda rudimentar e os choques elétricos e insulina ainda eram usados no tratamento da doença. Lembro claramente do assombro que a doença de meu pai me causava, e do medo que eu tinha quando ele surtava e, por vezes, se tornava um pouco agressivo. Mas seu humor mais recorrente era mesmo a depressão.
Em 1994, comecei a enfrentar os primeiros sintomas de depressão crônica. Muitas coisas estavam acontecendo na minha vida: era um período de grandes mudanças profissionais e de desafios crescentes. Eu era formado pela Escola Politécnica da USP e trabalhava como engenheiro fiscal de obras num grande empreendimento em São Paulo, mas logo seria transferido para Santo André, para uma ampliação de um shopping center. Tinha um vínculo forte com as artes, pois além de namorar minha antiga modelo de pintura, frequentava aulas de ateliê e iniciava promissora carreira artística, com exposições e vernissages em museus e galerias de arte. Chequei inclusive a organizar eventos artístico- culturais, expondo e participando de diversas vernissages com desenhos e pinturas. Na época de faculdade, cheguei a ser diretor do Grêmio Politécnico na Comissão de Estágio e Pós-Graduação e fui mentor/organizador da I SAPO (Semana de Arte da POLI), em 1989, importante evento artístico-cultural que ainda ocorre na USP, todos os anos, desde então.
Do ponto de vista existencial, estava passando por uma transição esotérica, com experiências de desdobramento astral (saída do espírito do corpo físico). Frequentei um Instituto que estudava esses fenômenos, sob mentoria de Waldo Vieira, mas que me causou profundas alterações psíquicas e emocionais. Tanto que até tentei o suicídio, devido à ingestão exagerada de medicação. Essa primeira crise durou até maio de 1995. Meses depois, decidi sair do país, após me licenciar do trabalho. Viajei a Hattiesburg, no Mississipi (Estados Unidos), para estudar inglês, pois os sintomas tinham se arrefecido naturalmente, mesmo com a suspensão dos remédios. É um fato realmente estranho que eu tenha conseguido viver num país estrangeiro, inicialmente de agosto de 1995 a maio de 1998, sem ter nenhum resquício das crises depressivas que eu tinha enfrentado no Brasil. O programa de MBA (Master of Business Administration), na University of Southern Mississippi, que eu cursava nos EUA era desafiador, e eu viajava bastante dentro desse país e pela Europa (fiz inclusive um estágio de economia internacional, de dois meses, em Londres, em julho/agosto de 1997, pelo British Studies Program). Todos os meus amigos, familiares e conhecidos achavam que eu tinha tomado a decisão correta. Era o melhor que poderia fazer pelo meu futuro. Tudo parecia ir bem, até que no final do semestre (maio de 1998), quando submetido a um grande estresse em decorrência de uma disciplina do MBA (Marketing), iniciando-se uma série de “fenômenos” que eu julgava ser de natureza mediúnica e sobrenatural. Comecei a sentir que recebia mensagens telepáticas da televisão e da internet, achava que meu telefone estava grampeado e que podiam ler a minha mente. Também conseguia decifrar importantes códigos secretos e universais de jornais e revistas. A CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos), que de fato havia me apresentado uma proposta de trabalho para trabalhar como agente overseas, depois da conclusão do meu mestrado, estava por trás da articulação dessa trama.
Em poucos dias, minhas atitudes bizarras chamaram a atenção de meus vizinhos e, numa ensolarada manhã de terça-feira, enquanto incorporava e achava que era o “Adão” bíblico, o escolhido para repovoar a terra, e ser o Messias do próximo milênio , fui abordado pelo jardineiro e pelo gerente do condomínio onde eu morava. Para mim, não havia mais dúvidas: aquele era o sinal claro e inequívoco de que era chegada a hora da Revelação. Rapidamente me despi e corri, nu, até mergulhar na piscina, que ficava em frente ao meu apartamento. Para meu espanto e desgosto, a primeira pessoa que eu vi ao sair da piscina era um policial vestido todo de preto. Ele me algemou e me conduziu até uma ambulância. Mas não desistia. Julgava que aquilo era uma “pegadinha” da CNN, empresa jornalística da qual eu seria herdeiro. O hospital seria apenas um local de depuração para a minha limpeza energética, já que eu era o Messias. Após uma série de procedimentos médicos, fui conduzido a uma “cela”, uma mistura de clínica com delegacia. Lá, fiquei duas semanas. Tinha profunda convicção de que minha alma seria tragada pelo inferno. Nesse período, enfrentei depressão e alterações de humor. Minha irmã conseguiu me remover para Miami e fazer com que consultasse um psiquiatra particular. Diagnóstico: transtorno esquizoafetivo. E eu teria de tomar medicação antipsicótica e antidepressiva para o resto da minha vida. Para mim, essa notícia foi devastadora, pois além dessa medicação, o psiquiatra me disse que eu dificilmente conseguiria exercer atividades que envolvessem muito estresse. Teria que ter uma vida bastante regrada dali para frente.
Sem concluir o MBA, tive que voltar ao Brasil para me tratar e tentar amenizar a crise. A psiquiatra, que me tratou inicialmente em meu primeiro surto, em 1995, não concordou com o diagnóstico do médico de psiquiatra de Miami, e, no final de 1998, retirou todo o antipsicótico (olanzapina) do tratamento. Manteve apenas uma dose de lítio, para regular o humor. E em janeiro de 1999, retornei ao Mississipi. Novamente, por minha conta e risco, cortei o lítio, sem procurar ajuda psiquiatra. Sentia-me bem e tudo caminhava normalmente (um dos medicamentos que eu usava): me formei e, em seguida, mudei para Saint Petersburg, Flórida. Alguns meses depois, mudei-me para Redmond, estado de Washington, para trabalhar na Microsoft Corporation. Porém, minha passagem por lá durou apenas dois meses. Tive problemas com a chefia e me demiti. Desnorteado, peguei o carro e fui procurar oportunidades de emprego em Miami. A viagem não terminou, pois ao cruzar o estado de Montana, surtei novamente e fui pego pela polícia local, que me encaminhou a um hospital psiquiátrico. Minha irmã, novamente, tirou-me da internação e trouxe-me de volta à Flórida. Percebi, então, que não teria condições de morar sozinho nos EUA, pois estava à beira de mais um mais um surto psicótico. Voltei ao Brasil e, depois de duas semanas, fui novamente internado, só que desta vez com o diagnóstico de bipolaridade. Fiquei, praticamente, mais de um ano sem sair de casa, sem tomar antipsicótico que seria recomendável para o meu transtorno, até minha quarta crise, que ocorreu em maio de 2001. Após duas internações, a equipe médica se convenceu de que o meu caso era o de transtorno esquizoafetivo. Por isso, teria mesmo de tomar neurolépticos (antipsicóticos).
Tenho uma formação acadêmica sólida (engenharia civil, MBA e um curso de criação e ilustração na Escola Panamericana de Arte), mas isso não se reflete em minhas ações profissionais e acadêmicas atuais. No final de 2004, prestei para Ciências Sociais, na USP, mas não passei nem para a segunda fase. Fiz cursinho pré-vestibular nos anos 2004 e 2005, mas desisti novamente de fazer as provas da Fuvest. Tive medo de tentar e não conseguir levar o curso em bom nível. Isso porque eu ainda não discorria sobre o que eu julgo ser o problema capital da esquizofrenia: a perda cognitiva, como atenção, concentração, raciocínio e memória. Apesar de tudo, esse é um fato que eu julgo relevante. Um dado importante: quando era mais jovem, com menos experiência de vida, e com menos medo de errar, sinto que eu arriscava e conseguia mais da Vida. Muitas vezes, com medo, sinto vontade de me esconder, de fugir, evito contato com as pessoas, especialmente com mulheres. Outro fator relevante da doença é que, com o uso de medicação antipsicótica, eu engordei muito. Antes da doença, pesava 73 kg. Atualmente, estou com 110 kg. Mas em outras coisas estou melhor. Coisas muito íntimas, que revelaria apenas a um terapeuta. Chequei a prestar a ETEC e passei em sétimo lugar (seria em primeiro se não fosse as “cotas”) em Comunicação Visual. Fiz dois meses e desisti após ter desenhos furtados. Fiz um curso intermediário de italiano na Associação de Ex-Alunos do Dante Alighieri (AEDA), colégio onde estudei o 1º. e 2. graus, mas acabei desistindo de continuar o curso. Desde 2003 venho atuando na ABRE (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia), ONG na qual atualmente fui eleito Presidente para a gestão 2021/22. No campo acadêmico, iniciei em 2017 um programa de mestrado na área de saúde mental, focado em recovery, no Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e tenho planos de continuar a minha vida acadêmico-profissional com um possível doutorado e atuar, futuramente, como consultor, pesquisador e professor.
Focando um pouco no meu dia a dia, existem fatos que aconteceram desde o início do meu transtorno: em 2000 e 2001, como disse, passei a maior parte do tempo sem sair de casa. Muitas vezes me via impossibilitado de sair da cama, tamanha era a depressão. Durante a semana, só saia para ir à terapia ocupacional e às sessões de psicoterapia. Nos fins de semana, ia à casa de minha avó, com minha mãe. Sentia muito desconforto nas atividades sociais e rotineiras. Mas eu gostava dos almoços e jantares com familiares e amigos. No final de 2000, cheguei a me inscrever na Fuvest para prestar Filosofia, mas desisti de fazer a prova. O mundo não valia mais a pena para mim. Tudo era cinza. Era tratado como bipolar. Tomava Lítio e antidepressivos e o antipsicótico Haldol por algum tempo. Em maio de 2001, consegui dar os primeiros passos para fora de casa. Ia ao cinema e ao Centro Espírita Kardecista, local onde iniciei cursos teóricos e práticos da Doutrina. Não houve mudança significativa entre as minhas atividades, mas eu continuava a me sentir acuado, com medo de situações sociais e de ter contato com outras pessoas. Em 2003, acabei por conhecer a ABRE (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia, uma ONG, através de uma palestra pública realizada na Biblioteca Mário de Andrade. Passei a frequentar as reuniões do grupo de Estratégia Comunicação e Informação do S.O.eSq., e, ao mesmo tempo, abandonei as sessões de terapia ocupacional no hospital psiquiátrico da Santa Casa de São Paulo. Isso me deu novo alento, pois conheci novas pessoas, também portadoras. Eu agora fazia parte de uma “tribo”. Minha visão e perspectiva de mundo mudaram bastante. No ano seguinte, conheci uma garota, também com esquizofrenia, muito doce e simpática. Tivemos um rápido relacionamento. Com a participação de terapeutas ocupacionais e portadores, iniciei também um trabalho num grupo chamado “acolhimento”, oportunidade em que me tornei um dos facilitadores do grupo. Em 2005, consegui um estágio no CDH (Centro de Direitos Humanos), conveniado da ABRE. Ajudei a desenvolver um material didático sobre Saúde Mental e Direitos Humanos. Em 2006, continuei com os trabalhos nos Grupos de Acolhimento e de Estratégia de Comunicação e Informação. No final desse ano, fui contratado como Diretor Adjunto da ABRE, cargo que foi revertido a Diretor Tesoureiro, anos mais tarde. Nesse tempo, tive muitos altos e baixos, oscilando entre entusiasmo e depressão, mas conseguindo viver com esperança realista. Em 2009, ganhei o 1º. lugar no Concurso Nacional de Pintura do projeto “Arte de Viver”, promovido por um grande laboratório farmacêutico.
Minha rotina de vida é singular, pois o trabalho na ABRE requer bastante dedicação, mas que pode ser exercido, até certo ponto, no escritório da minha residência. As perspectivas atuais são muito boas, pois a ABRE tem um ótimo potencial de crescimento e me dá muito apoio. Com relação à vida emocional, tenho com amigas, todas casadas ou namorando, mas tenho a esperança de encontrar uma companheira que me ame e me entenda do jeito que sou. Contudo, sei que preciso me amar mais, aumentar o meu ânimo e fazer mais coisas proativas, como, por exemplo, iniciar uma dieta para reduzir peso, fazer esporte, bem como equilibrar minha pressão. Tenho uma relação muito boa com minha família, especialmente com minha mãe, que é uma pessoa maravilhosa, cúmplice e companheira de todas as horas, que cuida de mim com o máximo de carinho. Devo dizer que a esquizofrenia, de certa forma, abriu novas portas e oportunidades para mim, especialmente por poder conhecer amigos de verdade, com os quais convivo hoje. Ao menor sinal de esmorecimento, eles me oferecem colo e me incentivam a seguir em frente com meus projetos. Apesar dos sintomas positivos e negativos da doença, não tenho tido mais delírios (perseguição, grandeza etc.) ou alucinações (visuais, auditivas, táteis, etc.). Mas, às vezes, tenho resquícios de depressão e embotamento afetivo. Para combater isso faço sessões de psicanálise com um psicanalista e tratamento psiquiátrico com um jovem psiquiatra, afiliado a Associação Médico Espírita.
Desde 1994 até hoje, durante os surtos psicóticos, muitas vezes me encasulei, não conseguia interagir com as pessoas ao meu redor. Mas isso está sendo superado. Atualmente, apesar da Pandemia, continuo trabalhando com colegas portadores e outros profissionais, em desenvolvimento de projetos bastante interessantes, como, por exemplo, um grupo de acolhimento. Nesse grupo, além de mentor e cofundador, fui promovido de facilitador a coordenador depois do período em que ele foi coordenado por terapeutas ocupacionais. Faço parte, também, do grupo de Comunidade de Fala, introduzido e organizado por um ativista e educador estadunidense, e do Laboratório de Criação Casa Azul, (LACCA), do qual fui um dos idealizadores, que tem diversas oficinas artístico-culturais, tais como: Arranjos Florais, Artes Plásticas, Dança, Escrita, Filosofia, Informática, Inglês, Mindfulness, Música, Taichi, Teatro, Yoga, entre outras. Dessa forma, fico muito satisfeito em poder retribuir todo o carinho e atenção que recebi nesses anos todos. Sinto que podemos fazer a diferença, tentar superar as dificuldades coletivamente e crescermos juntos. Isso tudo tem me dado muito alento. Ainda não me sinto plenamente realizado, pois tenho muito a aprender e a superar, pois o recovery é um processo em que se ter de “matar um leão por dia”, nos reinventando a cada dia, no aqui-agora, mas tenho vivido um dia de cada vez, com calma e lucidez, tomando o cuidado para não tropeçar novamente. Tenho uma qualidade de vida muito boa, e, com o tratamento psicanalítico, estou conseguindo superar os obstáculos e eventuais problemas existenciais inerentes a qualquer ser humano, portador ou não de esquizofrenia.
Por Raphael Henrique Travia
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