aula de Deleuze na Université de Vincennes em 1975
https://www.youtube.com/watch?v=LuTqmI_GLXM
Em primeiro lugar, quero registrar a alegria do encontro com uma aula de rara beleza tanto em termos de conteúdo como de forma. As referências trazidas no escopo do projeto e o modo como foi efetivado ao longo das aulas honram a definição formal dos dicionários, ou seja, “um espaço ou oportunidade para um movimento, atividade ou pensamento desimpedido” (1).
Sustentar a transmissão dos temas abordados sem lançar mão dos dispositivos comumente usados no ensino contemporâneo, como por exemplo os data-shows, é tarefa que parece se encaixar em modos de abordar mais afeitos à construção conjunta de pensamento entre alunos e professores. Este é apenas um detalhe que mostra como é importante e estruturante a escolha do tipo de tratamento da metodologia daquilo que vai ser compartilhado. E isto é tão crucial que, em certa ocasião, brinquei com os colegas referindo-me ao curso como tendo efeitos terapêuticos sobre nós, alunos. Sempre saímos outros desta aula.
Afetar e ser afetado, entrar em algo de uma forma e sair outro, aproximações do conceito de devir, são para mim a própria definição do que é o terapêutico nesta nossa tarefa de cuidado e acolhimento do outro. Na prática clínica tanto quanto no ensino dela ou dos caminhos trilhados pelos teóricos do campo em questão. Aliás é preciso sempre ressaltar o amálgama entre teoria e prática que aprendemos com Freud. E Ana Cecília Magtaz ( curso de Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo ) sempre trouxe esta dimensão, uma espécie de psicanálise em extensão, em sua prática de ensino conosco. Escuta genuína de nossas questões, embora nem sempre concordasse com nossas formulações de problemas a partir de sua fala. Mas sempre preservando o ethos respeitoso e instigante de permitir novas formulações para podermos pensar de forma desimpedida.
Instigar e permitir as formulações das próprias questões ou questões próprias por parte dos alunos é a parte mais preciosa do trabalho de quem se propõe a tarefa do ensino e da pesquisa. E isto não pode se dar se o espaço de diálogo crítico não estiver efetivamente presente na relação, seja ela terapêutica no sentido estrito ou na construção conjunta de saber no âmbito pedagógico. Somando-se a este contexto um tanto quanto dominante, o ethos social contemporâneo parece não estar ancorado na promoção de movimentos inventivo-criativos. O que vemos mais comumente é a repetição do mesmo, a “douta ignorância” que vai se perpetuando, incitando-nos a não buscar a trabalhosa, porém prazerosa, construção e formulação de problemas. Em tempos de repetição do mesmo no ensino e em quase todos os âmbitos da vida, dificilmente resistimos a nos abandonar às soluções fartamente ofertadas, fáceis, rápidas e totalmente acríticas deste mundo povoado de informações no lugar de saberes. Um pouco de possível, senão eu sufoco, frase de Deleuze que, ao referir-se ao território existencial vivido por Foucault no final da vida, pode ser lembrada neste nosso contexto contemporâneo para marcar a necessidade do inesperado, do novo, para se pensar e para viver.
Inspirada pela atmosfera de liberdade praticada no curso de Ana e pelas pistas deixadas por Deleuze sobre a atitude de abertura necessária à criação, tentarei formular neste pequeno exercício de escrita a questão que mobilizou meu interesse mais intenso no bojo do curso. Em Diálogos (2), o autor comenta: “As questões são fabricadas, como outra coisa qualquer. Se não deixam que você fabrique suas questões, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as colocam a você, não tem muito o que dizer. A arte de construir um problema é muito importante: inventa-se um problema, uma posição de problema, antes de se encontrar a solução.”
Inventar um problema. E problema aqui está colocado no sentido de uma problematização. Assim, uma questão, uma pergunta ficou reverberando em meus pensamentos a partir de uma aula ( de 30/10/17 ) e da leitura de seu texto suporte, O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Seria possível falar do encontro de dois conceitos advindos de campos diferentes como a psicanálise e a filosofia, a saber o surpreendente enigmático e o devir? Associá-los livremente seria legítimo? Ou poderia ser fruto de uma intuição apressada e nada produtiva?
Se falo em associação livre, penso que vale tentar uma aproximação entre os dois conceitos, sem ferir suscetibilidades. Afinal trata-se do exercício com liberdade da consigna de Freud, que também livremente transfiro aqui para o modo de tratar a questão que chamou a minha atenção, e da formulação de Deleuze, anteriormente descrita acima como fabricar questões com elementos vindos de qualquer parte.
Para começar, é preciso explicitar o sentido do termo encontro com vistas a conferir a possibilidade de utilizá-lo apropriadamente nesta tarefa. Trata-se de um termo com diferentes acepções, desde a da linguagem cotidiana, como mera interação, até o conceito filosófico construído por alguns autores como Espinosa, por exemplo.
Espinosa define o encontro como uma composição entre elementos de qualquer natureza, não somente a humana, onde há um aumento ou diminuição da potência de perseverar em ser dos elementos em questão. Bons encontros compõem e maus encontros decompõem as realidades em jogo. Trata-se então de uma espécie de relação onde o afetar e ser afetado pelo que os cerca está presente. E onde nada a priori condiciona os efeitos da qualidade dos encontros, ou seja, o que aumenta ou diminui a potência de cada encontro é singular para cada elemento e será sempre avaliado a posteriori, podendo compor ou decompor a relação.
Tomar os dois conceitos, o surpreendente enigmático e o devir, em sua relação a partir da definição filosófica de encontro e considerando que é possível fazê-lo mesmo que se venha a descobrir mais diferenças do que consonâncias, abre um campo de possibilidades de novas questões. Os encontros ou as composições podem também se dar na diferença, inclusive na distância entre universos diversos, como mostrou o filósofo. Núpcias entre reinos, na bela formulação de Deleuze por ocasião da observação do encontro entre uma vespa e uma orquídea (3).
No texto O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental, a propósito da pesquisa no campo da clínica, os autores definem a atenção flutuante como um “não querer notar nada em especial, e oferecer a tudo o que se ouve a mesma atenção, sem fixidez. Freud a contrapõe à atenção proposital, relacionada a uma intensificação deliberada da atenção sobre algum conteúdo eleito. A atenção proposital levaria o clínico a achar aquilo que ele já tem conhecimento prévio, ao caminho da comprovação” (4). Aqui podemos perceber a atitude de suspensão por parte do analista, buscando abdicar de decifrações do discurso, fugindo da repetição/reprodução de um mesmo já dado anteriormente. Do lado do paciente, a regra se desdobra na consigna de deixar correr solto o curso da fala, um entregar-se ao sabor das idéias, afetos, sensações, sentimentos e outras afecções dos corpos, sem uma finalidade previamente definida. Sem memória e sem desejo, atitude de abertura, todavia uma regra nem sempre fácil de ser seguida em virtude da censura e de suas vicissitudes. Ademais, tal estado de suspensão, requerido para os dois termos da relação, é fruto de um processo que se dá no decorrer da sessão, resultado de um exercício a ser construído no encontro.
A invenção genial de Freud, o Inconsciente, tem na relação analítica uma de suas aparições mais fulgurantes pois no processo que se dá entre seus termos, analista e analisando, chega-se ao estado de uma comunicação de inconsciente para inconsciente. Aí surge o surpreendente enigmático. Algo que perturba, um ato falho, o inusitado, o inesperado comparece neste movimento.
Ora, esse algo que se passa nesse processo construído a dois ou mais pode ser atribuído à ordem do encontro, à eclosão do acontecimento, enfim, do devir. Não se trata de uma interação, onde haveria a participação do eu, mas justamente uma saída do eu, tanto para o analista como para o paciente. Um processo a partir do qual ambos tornam-se outros. É como o rio de Heráclito, onde tanto quem se banha como o próprio rio nunca são os mesmos a cada vez que por ele se passa.
A atitude de escuta construída a partir destes parâmetros da atenção flutuante vai permitir a já referida saída do eu e a entrada no plano de produção desejante, plano de afetos e de forças que constitui o acontecimento, aquilo que se encarna em um estado de coisas (5). O surpreendente enigmático surge, então, quando nos deixamos afetar pelo encontro onde nos instalamos ao sabor do devir. Aqui poderíamos até arriscar a afirmação de uma coincidência entre o surpreendente enigmático e o devir.
Percebo agora que, à medida em que escrevo, já misturo os conceitos, sem uma preocupação maior com a caracterização de cada um em seu campo semântico. Em minha defesa vem a lembrança de que escrever também é um caso de devir, de deixar advir um outro, o inconsciente, pois neste processo somos literalmente arrastados por forças de toda ordem por caminhos diversos, uma multiplicidade de sentidos, partículas de mundos outros, enfim, uma desterritorialização. Pois bem, é preciso então delinear com mais exatidão os conceitos, a partir do solo constituinte de cada um deles.
Comecemos com o surpreendente enigmático, novamente lançando mão do texto de Ana e Manuel. “O clínico que se dispõe a escutar com atenção flutuante se depara com o surpreendente enigmático. O relato daquilo que surpreendeu o clínico em sua atenção flutuante segue o modelo do relato do sonho e sua interpretação, isto é, a lógica da transformação dos processos primários (energia não ligada) em processos secundários (energia ligada)”(7). Conforme Freud, o exercício da atenção flutuante levaria ao encontro do inconsciente oculto. Em outra passagem do texto de Magtaz e Berlinck surge a interessante figura do estrangeiro, outro modo de nomear o surpreendente enigmático: “O surpreendente enigmático tira o clínico de suas convicções preconceituosas, da dimensão da dúvida e da necessidade de comprovação teórica e o coloca em lugar neutro, posição que favorece a entrada do estrangeiro no inconsciente do clínico” (8).
Agora passo a explicitar o conceito de devir a partir dos textos de Deleuze.
“Pensa-se demais em termos de história, pessoal ou universal. Os devires são geografia, são orientações, direções, entradas e saídas. Há um devir-mulher que não se confunde com as mulheres, com seu passado e seu futuro, e é preciso que as mulheres entrem nesse devir para sair de seu passado e de seu futuro, de sua história. Há um devir-revolucionário que não é a mesma coisa que o futuro da revolução, e que não passa inevitavelmente pelos militantes. Há um devir-filósofo que não tem nada a ver com a história da filosofia e passa, antes, por aqueles que a história da filosofia não consegue classificar. Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão “o que você está se tornando?” é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra natureza. As núpcias são o contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-feminino, homem-animal etc. Uma entrevista poderia ser simplesmente o traçado de um devir. A vespa e a orquídea são o exemplo. A orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há um devir-vespa da orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla captura pois “o que” cada um se torna não muda menos do que “aquele” que se torna. A vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea torna-se órgão sexual para a vespa. Um único e mesmo devir, um único bloco de devir, ou, como diz Rémy Chauvin, uma “evolução a-paralela de dois seres que não têm absolutamente nada a ver um com o outro”. Há devires – animais do homem que não consistem em imitar o cachorro ou o gato, já que o animal e o homem só se encontram no percurso de uma desterritorialização comum, mas dissimétrica. Como os pássaros de Mozart: há um devir-pássaro nessa música, mas tomado em um devir-música do pássaro, os dois formando um único devir, um único bloco, uma evolução a-paralela, de modo algum uma troca, mas “uma confidência sem interlocutor possível”, como diz um comentador de Mozart – em suma, uma conversa ( … ) “Os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira…” É a definição do estilo. Também, nesse caso, é uma questão de devir. As pessoas pensam sempre em um futuro majoritário (quando eu for grande, quando tiver poder…). Quando o problema é o de um devir-minoritário: não fingir, não fazer como ou imitar a criança, o louco, a mulher, o animal, o gago ou o estrangeiro, mas tornar-se tudo isso, para inventar novas forças ou novas armas. É como na vida. Há na vida uma espécie de falta de jeito, de fragilidade da saúde, de constituição fraca, de gagueira vital que é o charme de alguém. O charme, fonte de vida, como o estilo, fonte de escrever. A vida não é sua história; aqueles que não têm charme não têm vida, são como mortos. Só que o charme não é de modo algum a pessoa. É o que faz apreender as pessoas como combinações e chances únicas que determinada combinação tenha sido feita. É um lance de dados necessariamente vencedor, pois afirma suficientemente o acaso, ao invés de recortar, de tornar provável ou de mutilar o acaso. Por isso, através de cada combinação frágil é uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma obstinação, uma perseverança ímpar no ser. É curioso como os grandes pensadores têm, a um só tempo, uma vida pessoal frágil, uma saúde bastante incerta, ao mesmo tempo que levam a vida ao estado de potência absoluta ou de “grande Saúde”. Não são pessoas, mas a cifra de sua própria combinação (9).
Ainda a propósito do modo como concebem a questão do desejo, Deleuze e Guattari definem: “Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo” (10).
Sair de si parece ser um operador que aproxima os dois conceitos em questão. Uma operação que implica a entrada em outro plano existencial, mesmo que de forma fugaz pois dela não se tem o controle, habitando o plano de forma paradoxal.
Os autores seguem Freud ao conceber a existência de um plano inconsciente de produção do desejo. Porém fazem uma deriva quando o abordam como uma maquinação, descolada do campo da linguagem ou da falta, razão pela qual o chamam inconsciente maquínico. Trata-se de uma dimensão de imanência, um plano produtivo, ao qual nada falta.
Voltemos novamente à tentativa de associar os conceitos, mas agora com a ajuda de situações concretas que podem vir a esclarecer melhor esta empreitada. Quando disse lá no começo do texto que a aula de Ana teria uma função terapêutica, referi-me aos efeitos do encontro com a singularidade desta professora/pessoa e os conteúdos que escolheu dentre a infinidade de possibilidades que a disciplina oferece e seu modo particular de tratá-los conosco. Saímos de muitas cristalizações pela agitação do campo de conhecimento por intermédio de novas possibilidades de pensamento. Quando traz a referência ao manuscrito de Freud sobre as Neuroses de Transferência ( 1985 ), perdido e reencontrado, e sua bela formulação sobre o nascimento da angústia e o advento da pulsão, me vi diante da tarefa de ressignificar muito do que aprendi sobre a psicanálise. Encontros produzidos pelo surpreendente enigmático que subjaz ao funcionamento ímpar desta máquina expressiva que é a psicanálise. Outros momentos preciosos se deram no decorrer das aulas, como as referências a autores que funcionam como intercessores, operadores ou dispositivos produtores de devires outros.
Referências
Wikipedia
Deleuze, G.; Parnet, C. Uma conversa, o que é, para que serve? In: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 9.
Deleuze, G.; Parnet, C. Uma conversa, o que é, para que serve? In: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 5.
Berlinck, M. T.; Magtaz, A. C. O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental. In: Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.. São Paulo, v. 15, n.5, 2012. p. 75.
Zourabichvili, F. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004, p.15.
Deleuze, G.; Parnet, C. Uma conversa, o que é, para que serve? In: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 4-5.
Berlinck, M. T.; Magtaz, A. C. O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental. In: Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.. São Paulo, v. 15, n.5, 2012. p. 77.
Berlinck, M. T.; Magtaz, A. C. O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental. In: Rev. Latinoam. Psicopat. Fund.. São Paulo, v. 15, n.5, 2012. p. 78.
Deleuze, G.; Parnet, C. Uma conversa, o que é, para que serve? In: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 3.
Deleuze, G.; Guattari, F. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Editora 34, 1997 – vol 4, p. 64.