Entrevista: Marcelo Rossal destaca a relação entre a Antropologia e o campo da Comunicação e Saúde

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Entre as suas aulas como professor adjunto da Faculdade de Humanidades e Ciências e da Educação, da Universidade da República do Uruguai (UdelaR), e suas pesquisas como antropólogo atuante pela mesma UdelaR e integrante do Sistema Nacional de Pesquisadores, Marcelo Rossal concedeu por e-mail uma entrevista ao site do Icict, onde abordou, dentre outros pontos, a relação entre a Antropologia e o campo da Comunicação e Saúde.

Rossal foi supervisor de Luana Alencar, aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde – PPGICS, em seu período de permanência na Universidade da República do Uruguai – UdelaR, durante o desenvolvimento da sua tese intitulada “Usuárias de crack, Campanhas e Profissionais de Saúde: os discursos das e sobre mulheres que fazem uso problemático de drogas” – orientanda por Kátia Lerner, pesquisadora do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces) e professora do PPGICS.

A aluna do PPGICS viajou a Montevideu pelo Programa Institucional de Internacionalização, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – CAPES/Print.

Defendida em setembro deste ano, a tese traz a análise dos discursos de mulheres usuárias de crack sobre si e as campanhas nacionais de combate à droga, além de ouvir os profissionais de saúde do Consultório na Rua, de Juiz de Fora (Minas Gerais). Rossal, em seus artigos, destaca a vulnerabilidade social e a violação dos direitos por agentes do poder público em relação aos usuários de crack, em especial os jovens.

Leia abaixo a entrevista completa (traduzida).

A tese da Luana Alencar analisa os discursos de mulheres usuárias de crack sobre si, bem como das campanhas nacionais de combate ao crack e dos profissionais de saúde do Consultório na Rua (CR). O senhor veria pontos em comum ou pontos divergentes com a situação no Uruguai? Quais? 
Há pontos em comum e divergências: as campanhas no Uruguai têm sido diferentes das do Brasil, pois a redução de danos rege toda a política de drogas do país desde 2004. Nesse sentido, campanhas de terror e estigmatização não são comuns no país. No entanto, a estigmatização de mulheres usuárias de pasta de cocaína é muito presente e está ligada a discursos aporofóbicos (sentimento de aversão ao pobre), já que os usuários de cocaína fumável no país são basicamente pessoas em situação de pobreza.

Seus estudos abordam as trajetórias de vida de sujeitos precarizados e a intervenção administrativa e punitiva dos dispositivos médicos e policiais. Em que ponto seus estudos se aproximam da pesquisa desenvolvida por Luana?
O campo de pesquisa de Luana também foi desenvolvido em contextos de altíssima vulnerabilidade social e de violação dos direitos de seus interlocutores. Evidentemente, médicos e policiais têm um poder muito forte em relação aos usuários de drogas, que, embora no caso uruguaio o uso de qualquer substância não seja crime, estão altamente vulneráveis a qualquer possível crime cometido em seu ambiente, assim como os direitos diminuídos das mães que vivem na rua e usam pasta-base de cocaína, cujos filhos podem ser retirados delas em caso de qualquer inconveniente.

Que novos caminhos, em sua opinião, podem ser criados ou descobertos na união entre a Antropologia e o ensino de Comunicação e Saúde?
Basicamente em três aspectos: o ético-metodológico, o teórico e o de intervenção. No campo ético-metodológico, é evidente que os estudos aprofundados que exigem um grande diálogo com as pessoas, como os estudos etnográficos, têm implicações éticas relevantes que, em relação ao campo da medicina, têm complexidades diferentes que relacionam o ético com o metodológico: todos os procedimentos de pesquisa etnográfica devem passar pelo crivo de uma reflexividade deontológica e para além das burocracias das comissões de ética. Por outro lado, a antropologia médica desde os seus primórdios teve uma relação com a comunicação, sobretudo no que diz respeito às diferentes alteridades que coexistem numa sociedade e aos direitos aos cuidados de saúde: os primeiros antropólogos médicos, para além do respeito pela diversidade cultural, procuraram facilitar o acesso aos cuidados de saúde às populações vulneráveis e também em situação de contacto cultural e mesmo de tutela colonial. Assim, numa sociedade diversa, plural e desigual, será possível comunicar adequadamente no domínio da saúde sem o apoio das ferramentas centrais da antropologia médica? Por outras palavras, tanto no campo da investigação como no da intervenção, a relação entre a antropologia e a comunicação em saúde é essencial.

Como o senhor vê a parceria entre a Universidad de la República (UdelaR, Montevideo, Uruguay) e o Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS)/Icict/Fiocruz?
A maior parte do intercâmbio científico entre a Universidade da República e a Fiocruz realiza-se no domínio da investigação em matéria de saúde, também em concertação com o Instituto Pasteur de Montevideu. Em diferentes momentos, esse intercâmbio foi muito frutífero. Quanto ao intercâmbio com a Área Social da Universidade da República, há muitas áreas a explorar, tanto entre a Faculdade de Informação e Comunicação, a Faculdade de Ciências Sociais e a Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação (da qual sou professor). O intercâmbio que se realizou na sequência da investigação de Luana Alencar oferece uma amostra de diferentes formas de acordo, e um acordo de cooperação específico seria um passo razoável a dar.

Os países latino-americanos têm em comum não só a história colonial, mas também as mazelas sócio-econômicas. O senhor crê que essas parcerias entre os programas de pós-graduação ajudariam a um maior intercâmbio de ideias e até planejamentos de políticas públicas para o continente?
É evidente que o intercâmbio entre nossos países é uma realidade que tem muito espaço para ser aprofundada entre nossas instituições. No campo da pesquisa em ciências sociais, embora o Uruguai e o Brasil tenham uma história semelhante, também podemos observar as formas como diferentes questões têm sido tratadas, especialmente em áreas tão sensíveis como o acesso à saúde para populações vulneráveis e o desenvolvimento de políticas de drogas que ponham fim à tragédia produzida pela guerra às drogas.

Pesquisa sobre usuárias de crack une dois países

Luana Alencar e sua orientadora, Kátia Lerner, professora do PPGICS e pesquisadora do Laboratório de Comunicação e Saúde – Laces, do Icict, explicaram como foi feito o trabalho em parceria com a UdelaR e a troca de experiências com realidades, aparentemente distintas, mas tão próximas.

A pesquisa multidimensional analisou os discursos de mulheres usuárias de crack sobre si, bem como o das campanhas nacionais de combate e prevenção ao uso da droga e dos profissionais de saúde do Consultório de Rua (CR), de Juiz de Fora (MG) sobre essas mulheres.

Para a sua tese “Usuárias de crack, Campanhas e Profissionais de Saúde: os discursos das e sobre mulheres que fazem uso problemático de drogas”, a aluna do PPGICS entrevistou oito mulheres e na conversa com elas, foram abordados temas que iam desde o primeiro contato com a droga, até as suas aspirações para o futuro. Paralelo a isso, Luana também ouviu quatro profissionais, da equipe de seis, que compõem o CR: uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, uma assistente social e um médico.

Ao todo, foram quatro campanhas federais, de circulação nacional: “Drogas, nem morto” (1998); “Crack, nem pensar!” (2009); “Crack, é possível vencer” (2013) e, por fim, “Você nunca será livre se escolher usar drogas” (2019).

Segundo Luana, “as campanhas tiveram como objetivo entender como essas mulheres são retratadas, se elas tiveram acesso previamente a essas campanhas, se elas se reconheciam ou não nos discursos ali presentes e a opinião delas sobre o conteúdo das peças publicitárias governamentais”, explica.

A doutoranda do PPGICS destaca ainda que “ouvir essas mulheres foi a parte mais importante para entender como e se essas políticas públicas de saúde funcionam e estão em consonância com as demandas das mulheres usuárias”, explica. “Eu chamo a análise de cada uma dessas esferas de tripé: Comunicação, Saúde e Discurso de si” – enfatiza.

Maternidade e uso de remédios controlados 
Em sua observação de campo, a aluna de doutorado do PPGICS, que também é jornalista e psicanalista, percebeu que as mulheres usuárias de crack se identificaram – “ao menos na hora do grupo focal” – com os discursos das campanhas. Mas, outros pontos chamaram a atenção da pesquisadora: “ao longo do meu trabalho, desde a observação participante até as entrevistas etnográficas, pude perceber que o uso de crack e a situação de rua são consequências de problemas sociais, econômicos e relacionais mais profundos”, explica.

A maternidade foi um tema delicado entre as usuárias – “era um tema que afligia a todas”, explica Luana: “a queixa e o desejo de reaverem seus filhos era e é seu maior sonho”.

A aluna do PPGICS chamou a atenção para um ponto quase que esquecido nos abrigos: o uso abusivo de medicamentos controlados. “Concluí que o uso de remédios controlados, sem a devida fiscalização dos abrigos, pode se tornar potenciais novos usos abusivos por parte das usuárias de crack, gerando ainda mais problemas de saúde, visto que não há uma política de redução de danos para pessoas que fazem o uso abusivo de remédios psiquiátricos controlados no Brasil” – afirma.

Delicadeza e coragem
A pesquisadora do Icict, Kátia Lerner destacou alguns dos desafios da pesquisa realizada: “Luana fez um trabalho de campo marcado pela extrema delicadeza e, também, coragem. Não é simples realizar trabalhos com grupos em situação de grande vulnerabilidade, com histórias de vida muito duras. A interação com sujeitos de pesquisa é sempre um desafio, mas nesse caso mobilizou doses ainda maiores de sensibilidade e sabedoria que muitas vezes os manuais não ensinam. Essa situação nos interpelou de várias formas, em especial na nossa condição enquanto mulheres, e nos fez refletir em particular sobre relações de poder ligadas a gênero.”

Luana que, além de jornalista é também psicanalista freudiana, destaca que “a escuta de anos das minhas fontes jornalísticas, aliadas ao entendimento da psiquê humana pela escuta psicanalítica me proporcionaram escutas e entrevistas mais profundas com as mulheres entrevistadas.”  Por outro lado, ao ouvir “as histórias de vida dessas mulheres, tanto no Brasil, como no Uruguai, me deixaram mais confortável para me autorizar como analista”, afirma a aluna do PPGICS.

Apoio além-fronteiras
Kátia Lerner também ressaltou a parceria com Marcelo Rossal: “Ele foi um grande parceiro, pois além de ser uma especialista no tema – o uso problemático de drogas – e ter larga experiência em etnografia, incorporou Luana em sua pesquisa de campo, provendo acesso a espaços que ela sozinha não conseguiria”, destacou.

Luana também é só elogios ao professor da UdelaR: “O professor Rossal, além de um profissional ímpar e referência na área de drogas no Uruguai, foi um supervisor muito cuidadoso e zeloso. A contribuição dele na minha pesquisa foi desde o afeto em me buscar no aeroporto, na minha chegada a Montevidéu, até compartilhar bibliografias para minha pesquisa, conhecimento multidisciplinar, orientações periódicas, críticas construtivas e caminhadas etnográficas pelo centro da cidade. Aprendi muito sobre antropologia, sobre o tempo do outro, sobre a paciência do etnógrafo e sobretudo sobre a sua ética. Tudo o que aprendi com a professora Kátia e o professor Rossal, me tornaram apta para outras oportunidades em campo” – enfatiza.

A aluna do PPGICS passou seis meses na UdelaR, em Montevídeo, onde juntamente com a equipe do professor Rossal, puderam se aprofundar em pesquisas de campo, junto a pessoas em situação de rua, com uso problemático de drogas.

A viagem e a estadia de Luana Alencar só foram possíveis por meio do Programa Institucional de Internacionalização, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – CAPES/Print, cujo dois dos objetivos são promover a construção de planos estratégicos de internacionalização e estimular a formação de redes de pesquisas internacionais.

Para Kátia Lerner, “esse é um caminho que deve ser aproveitado, fortalecendo a internacionalização do PPGICS e da pesquisa em geral do Icict, em especial no eixo Sul-Sul. Essa troca de saberes e a perspectiva comparativa são de uma riqueza ímpar para a compreensão mais profunda de nossa própria realidade”, finaliza.