Documentário aborda a vida das mulheres marisqueiras do nordeste do Brasil
Os filmes do catálogo da Fioflix têm o poder de nos transportar para os mais diversos ambientes. Esse é o caso de Mulheres das Águas, um filme que, não apenas nos informa e educa, como também nos imerge na realidade das mulheres marisqueiras do nordeste do Brasil. Acessado na plataforma da VídeoSaúde, o curta documental utiliza-se da soma entre o som e a imagem para criar uma atmosfera sagrada, como se estivéssemos com os pés na areia e com o vento salgado batendo no rosto. Embora esses elementos audiovisuais pincelem o filme com um toque de poesia, o seu grande diferencial é aquilo que as produções da VideoSaúde fazem de melhor: debater questões sociais pautadas na saúde. É depois de entender a sacralidade do manguezal que sentimos o impacto que a poluição e os danos ao ecossistema fazem na vida dessas famílias e, principalmente, na sua saúde.
Antes mesmo de vermos qualquer imagem em movimento, ouvimos o som do mar. Em conjunto com os créditos iniciais, escuta-se o movimento das águas. Ele preenche a ausência de imagem antes que um plano do reflexo do sol contra as suaves ondas se instaure. Por um momento, apenas vemos e escutamos o mar. Uma melodia suave acompanha essas imagens e sons, trazendo uma atmosfera de sacralidade. As primeiras palavras proferidas dizem respeito ao que mais se conquista ao assistir ao filme: conhecimento. Uma mulher marisqueira nos fala de uma flor do mangue – cachimbo – que é muito respeitada por ela e por seus filhos. É um conhecimento vindo delas, mulheres marisqueiras, para seus filhos e, por conta da existência desse filme, para nós também. A maternidade, inclusive, é muito presente nesse primeiro momento. Não apenas pela obviedade da presença de mulheres mães, mas também pela presença calorosa do mar. “Quando eu falo que o mar é terapia, é porque eu nasci lá. É o som dele que me faz dormir, que me faz refletir.” Aqui, a água é uma personagem. Ela e as mulheres coexistem como se fossem uma só. Paralelos entre elas são feitos a todo tempo, desde o mangue como um berçário para as espécies marinhas até a beleza inconstante do mar. “Tem dia que eu acho que a maré está bem arrumada, bem maquiada, bem bonita. Tem dia que ela está chateada, como nós mulheres. Tem dia que estamos mais bonitas, tem dia que estamos mais chateadas”. É só então que o título nos é exibido, como se ele só nascesse depois de ser gerado por essas palavras, por esses sons e por essas imagens. Não entenderíamos a vida e o trabalho dessas mulheres sem entender a relação afetiva entre elas e o mangue.
O documentário é, além de visualmente belo, informativo, mas não de uma maneira rígida e expositiva. Nós acompanhamos a vida dessas mulheres e somos convidados a entrar em suas casas. Não aprendemos através de um modelo impessoal, muito comum no gênero documental. Acabamos por aprender ao acompanhá-las. Quando elas relatam o seu processo de transporte até o manguezal, no qual remam durante uma hora, nós remamos com elas. A câmera representa os nossos olhos e ouvidos ao ser posicionada nas canoas que deslizam pelas águas. O filme é um registro de conhecimentos informais passados de geração em geração, como a flor do mangue, cachimbo, ou o método de pesca do aratu. São conhecimentos que seriam perdidos caso o filme não transformasse estas mulheres em protagonistas. Mulheres das Águas carrega em si a relevância de dar luz a essas vozes. Vozes estas que constantemente misturam-se ao som do mar. Os direitos do mar são os seus direitos e a saúde do mar é a sua saúde. Não há distinção entre as mulheres e o mar, elas são uma unidade.
Para além dos conhecimentos registrados e modo de vida capturado em imagem, a obra relata diversas injustiças e dificuldades. Por mais que a pesca seja um trabalho essencial para a economia local e manutenção da cultura, ela é extremamente desvalorizada. O trabalho longo e exaustivo não recebe a remuneração devida, principalmente pela falta de regulamentação. As mulheres marisqueiras, por mais que neste filme sejam protagonistas, foram historicamente muito invisibilizadas. Mesmo exercendo o trabalho da pesca somado aos trabalhos domésticos, elas não têm seus direitos garantidos. Essa ausência de direitos se estende, não só ao lado econômico, como também ao da saúde. Uma jornada trabalhista tão desgastante gera consequências ao corpo. “Têm médico que nem pra sua cara olha”. Há, infelizmente, uma desumanização dessa comunidade por parte do sistema de saúde, mesmo que doenças ocupacionais sejam tão recorrentes. Doenças estas que, não necessariamente, são inevitáveis. Outro lado muito explorado ao longo da narrativa é a poluição crescente que acomete os manguezais. A grande quantidade de agrotóxico e a crescente instalação de indústrias causa um impacto direto na vida dessas mulheres. “Aí vem o complicado: mata o mangue, mata o berçário e a vida da gente, que está com nosso corpo, como vocês viram. Meu corpo está na lama. Então a lama já está com produto químico que vai gerar algum tipo de doença para nós, mulheres marisqueiras, que estamos com nossos corpos jogados nesta lama.”
Por mais que imagens específicas da poluição não sejam muito exploradas, a visão dos impactos ambientais é nítida apenas pelo artifício da fala. Os agrotóxicos. O cheiro. Os peixes boiando. A cena não nos é mostrada, mas ela se faz visível pelas palavras. A não existência de um sistema digno de tratamento de esgoto é somado à poluição intensa: “Nossas fezes na água boiando em um lugar que deveria ser sagrado pros nossos filhos tomarem banho.” “Eu só quero que a minha ilha tenha saneamento básico pra gente se sentir gente”. Os impactos relatados ocorrem em nome do “progresso” que não é visto, ouvido ou sentido pelas comunidades locais. “Pra onde vai tanta gente se a gente perde o manguezal? Eu não sei fazer outra coisa e nem quero”. Instaura-se uma atmosfera de impotência ao percebermos a gravidade de uma situação que não recebe a devida atenção. Embora o Estado não reconheça o trabalho das mulheres marisqueiras e constantemente negue direitos, a educação e a presença da escola abre portas para uma nova realidade: a da resistência. ”A gente precisa entender o que a Lei nos garante. E a escola nos garante isso, nos ensinou isso.” Vemos como o processo educacional gera, na prática, o conhecimento necessário para a aquisição de direitos: “Precisa-se criar instrumentos a partir da necessidade, a partir do ouvir esse povo.”
É com um ar de esperança que o documentário nos guia para os seus minutos finais. Após sermos agraciados com conhecimentos relevantes proferidos pelas mulheres pescadoras, vemos estas mesmas mulheres ganharem outros tipos de conhecimento essenciais para a melhora da sua qualidade de vida. Por mais que a poluição e os impactos ambientais sejam muito presentes e estejam em ascensão, as mulheres marisqueiras continuam caminhando. É dessa forma que as últimas imagens do filme se despedem de nós, espectadores. As mulheres caminhando pelas águas, mesmo com os percalços. O som dos seus passos na água. O som forte e imponente do mar. Para assistir Mulheres das Águas e outros 400 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a nossa plataforma Fioflix: Vídeo Saúde.
Assista o documentário Mulheres das águas aqui ou no link: https://videosaude.icict.fiocruz.br/filmes/mulheres-das-aguas/
Catálogo da Fioflix: https://videosaude.icict.fiocruz.br/
por Madu Negreiros (estágio supervisionado VideoSaúde Fiocruz)