O século XXI começa com um importante marco legal/conquista na Saúde Mental Brasileira, a Lei 10216 de 06 de abril de 2001, oriunda do Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado, esta lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental¹. A nova legislação consagra o princípio do atendimento comunitário, extra-hospitalar, promotor de reintegração social, no qual as internações, se inevitáveis, devem ser realizadas em ambiente acolhedor, propiciador do aumento de autonomia².
A lei 10216 também é conhecida como lei da Reforma Psiquiátrica uma vez que esta é fruto de um movimento proveniente da insatisfação com o modelo de saúde mental vigente até então, no qual se excluía e segregava as pessoas em sofrimento psíquico nos hospitais psiquiátricos, e da militância de pessoas envolvidas com a saúde mental para construção de um novo paradigma de atenção em saúde mental, garantindo os direitos e a dignidade das pessoas em sofrimento psíquico, com a sua devida inserção e participação na comunidade.
A Portaria 336/GM de 19 de fevereiro de 2002 define e estabelece diretrizes para o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial. Estes serviços passam a ser categorizados por porte e clientela, recebendo as denominações de CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad³. Tais serviços em conjunto com a atenção básica são os responsáveis pelo atendimento em saúde mental da população.
CAPS I – Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes; CAPS II – Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes; CAPS III – Serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população acima de 200.000 habitantes; CAPS i II – Serviço de atenção psicossocial para atendimentos a crianças e adolescentes, constituindo-se na referência para uma população de cerca de 200.000 habitantes, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local, atendendo a critérios epidemiológicos; CAPS ad II – Serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, com capacidade operacional para atendimento em municípios com população superior a 70.000³.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), são constituídos por equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar e realiza atendimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso do crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não intensivo³.
Os chamados CAPS III, se constituem em serviço ambulatorial de atenção contínua, durante 24 horas diariamente, incluindo feriados e finais de semana³. Por funcionarem continuamente, estes serviços possuem leitos para pessoas em situação de crises, sem que seja necessário uma internação hospitalar.
Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), foram instituídos pela Portaria 106 de 11 de fevereiro de 2000, constituem-se em moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social⁴.
A Lei 10708 de 31 de julho de 2003 institui o Programa de Volta para Casa (PVC), que se constitui em um auxílio-reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, internados em hospitais ou unidades psiquiátricas⁵.
O PVC e os SRTs possibilitam as pessoas egressas de longas internações, as quais foram privadas de um lar e de uma formação profissional entre outras privações, uma moradia e um auxílio financeiro para que as mesmas possam se inserir na sociedade de forma mais autônoma e digna.
Em 2011 a Portaria 3088 institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O ponto de atenção especializada na RAPS é o Centro de Atenção Psicossocial⁶.
A reabilitação psicossocial é um dos eixos da RAPS e é composto por iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas sociais as quais devem articular sistematicamente as redes de saúde e de economia solidária com os recursos disponíveis no território para garantir a melhoria das condições concretas de vida, ampliação da autonomia, contratualidade e inclusão social de usuários da rede e seus familiares⁶.
No ano 2000 havia 295 CAPS no Brasil, em 2014 esse número passa para a marca de 2209 serviços. Em 2002 o país possui 51393 leitos SUS em hospitais psiquiátricos, caindo esse número para 25988 em 2014⁷.
Os dados acima reafirmam a mudança paradigmática ocorrida na saúde mental brasileira, onde os serviços de base comunitária são expandidos em substituição dos leitos de hospitais psiquiátricos, possibilitando que as pessoas com sofrimento psíquico sejam atendidas na sua comunidade, por equipes que conhecem a realidade e o contexto que as envolvem, e em articulação com a atenção básica, podendo acessar suas famílias, ampliando o escopo de atuação, dando a essas pessoas um novo lugar social, diferente da exclusão a qual eram submetidas anteriormente.
Ressalta-se o estabelecimento de estratégias/programas que garantem a inserção social mesmo daqueles cuja vulnerabilidade é ainda maior, como pessoas sem vínculos sociais e familiares e sem fonte de renda, através dos SRTs e PVC, além da possibilidade de trabalhos através das cooperativas e empreendimentos solidários que trabalham numa ótica de respeito as capacidades e limitações das pessoas, diferentemente da lógica de mercado que escolhe apenas aqueles que possam ter melhor desempenho.
Neste sentido, a psiquiatria do século XXI está pautada em um modelo de Integração com a Atenção Primária através do matriciamento, respeitando os princípios da APS e as diretrizes estabelecidas em políticas e protocolos⁸.
Nos últimos anos a OMS (Organização Mundial de Saúde) têm priorizado o tema Saúde Mental na saúde pública, entendendo a lacuna de cuidado na temática existente hoje, considerando a necessidade de acesso e transformação do modelo de atendimento integral, biopsicossocial⁹. Recomendou ainda, através do relatório mundial de 2001 dez ações com o objetivo de garantir prevenção e disponibilizar recursos adequados aos tratamentos para os transtornos mentais. São essas⁹:
1. Proporcionar tratamento em cuidados primários;
2. Disponibilizar medicamentos psicotrópicos;
3. Proporcionar cuidados na comunidade;
4. Educar o público;
5. Envolver as comunidades, as famílias e os usuários;
6. Estabelecer políticas, programas e legislações nacionais;
7. Preparar recursos humanos;
8. Estabelecer vínculos com outros setores;
9. Monitorizar a Saúde Mental na Comunidade;
10. Apoiar mais a pesquisa.
Do ponto de vista da organização dos serviços, a Saúde Mental também passou a ser inserida no contexto da Saúde do Trabalhador, com a inclusão do risco psicossocial nas avaliações da equipe de SST (Segurança e Saúde do Trabalho). Indicadores como absenteísmo e afastamento previdenciário por transtornos mentais tem elevado os custos nas instituições, motivo pelo qual reforça ainda mais a importância deste tema no cenário ocupacional.
A Saúde Mental está presente em todas as épocas e culturas, mas quase sempre reconhecido como algo perturbador¹º. Em nossa sociedade atual, o grande desafio, além do aspecto político, é desconstruirmos o estigma existente dos chamados “loucos”, que por sua vez, estão escondidos na sociedade, cultivando a “doença” isoladamente ou até inseridos em algum serviço que tem como premissa o tratamento medicamentoso, sem o olhar da reabilitação psicossocial. As políticas criadas no século XXI tiveram até então a premissa de descontruir o estigma com relação às pessoas com sofrimento psíquico e sua reinserção na sociedade como cidadãos de direito, sendo um avanço comparado ao que era praticado antes disso.
Ainda há muito que melhorar, o estigma ainda é grande com relação a essas pessoas e politicamente já estamos tendo alguns retrocessos, como pagamentos maiores para internações hospitalares em psiquiatria do que o investimento em CAPS, fatos ocorridos recentemente, o que nos mostra a necessidade de participação e engajamento para com a luta pela manutenção dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico, para que os avanços conquistados no século XXI não se percam.
Miria Polonio
Rosangela Ferreira de Souza
Alunas do curso de Especialização em Enfermagem em Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa – SP
REFERÊNCIAS
1. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Lei nº 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica de 06 de abril de 2001. Diário Oficial da União.
2. Barros, S.; Bichaff, R. Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. São Paulo: FUNDAP, 2008.
3. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM 336, de 19 de fevereiro de 2002. Define e estabelece diretrizes para o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial.
4. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria 106 de 11 de fevereiro de 2000. Diário Oficial da União.
5. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Lei n.º 10.708, de 31 de julho de 2003a, institui o auxílio reabilitação para pacientes egressos de internações psiquiátricas (Programa De Volta Para Casa). Diário Oficial da União.
6. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; dez 26.
7. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Mental em Dados – 12, ano 10, no. 12. Informativo eletrônico. Acesso em 18.06.2019.
FORTES, S. et al. Psiquiatria no século XXI: transformação a partir da Integração com Atenção Primária pelo matriciamento. Rio De Janeiro: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Rio de Janeiro; 2014.
9. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório Mundial da Saúde. Saúde Mental: nova concepção, nova esperança. 1 edição, Lisboa, Abril de 2002.
10. CAMARA, F.P. Coluna Psiquiatria Contemporânea. A psiquiatria no Brasil do século XXI. Disponível em: < https://www.polbr.med.br/ano16/cpc0816.php >. Acesso em: 20 jun. 2019.