Vou trazer aqui a experiência que tive quando trabalhei no Consultório na Rua na cidade de Santos (São Paulo), em 2017 a 2019.
Quando lembro dos momentos vividos e das práticas enquanto Terapeuta Ocupacional atuando nesse campo, um filme me vem à cabeça. Um filme com cores diversas, cheiros, gostos, corpos, gestos, morte, vida…
Quando iniciei as aproximações com as pessoas em situação de rua, com o cuidado que seria possível cultivar, produzir, diversos deslocamentos me atravessaram enquanto Terapeuta Ocupacional. Sensações, percepções…pessoas vivendo em situações-limites, inimagináveis.
Adentrei em territórios diversos, a radicalidade impossível da miséria, da fome, dos afetos…a escuridão e o medo de quem ali vive dentro de um túnel onde passa um transporte que liga Santos a cidade vizinha; corpos com feridas profundas que não cicatrizam, feridas das histórias de vida, feridas nas peles superexpostas ao frio, chuva, vento. Lembro de uma pessoa dormia em um canto entre a rua e o viaduto; outra teve seu filho retirado já na maternidade pelo julgamento de seu corpo, de sua cor de pele, de sua revolta…
Um tempo de muito trabalho. Mobilizar equipes de saúde e de outras redes para o acesso e o cuidado digno, articular recursos para garantir o acesso ao básico para poder sobreviver. Me vi atuando no limite da vida, no limite da morte, levando pessoas ao pronto-socorro, esperando junto a elas a hora da consulta…
Mas o que eu gostaria de trazer para este encontro, uma tonalidade que diz respeito ao que temos de mais precioso na nossa profissão, é esse incessante desejo de transpor a sobrevida, a miséria, a precariedade afetiva das relações – um incessante desejo de produção de vida, de entender que sobreviver não basta, é preciso ultrapassar…
Vou contar aqui então, um dia de uma ação, que fizemos em uma praça em um bairro de classe média em Santos. Nessa praça, moravam algumas pessoas e íamos a este território todas às terças a tarde, para conversar, para estar junto, para atender suas necessidades de cuidado. Voltávamos todas às terças, como quem cultiva uma semente, cuida dos vínculos com as pessoas para que eles fortaleçam e muitas vezes, em momento inesperado, o cuidado aconteça. Foi preciso tempo e disponibilidade.
Observava que na praça, outras pessoas a habitavam, circulavam, jogavam, praticavam esportes. E a presença de pessoas morando ali e nós, da equipe de saúde, mobilizava afetos diversos: em um dos dias foram retirados os bancos que as pessoas dormiam, se alojavam. Apesar destas e outras perplexidades que aconteciam, dessas lutas que travávamos todos os dias, sabia que o trabalho ali, na relação com as pessoas que vivem nas ruas, não seria somente lutar contra a sobrevivência em meio a forças de desolação.
Uma característica muito forte que a Reforma Psiquiátrica traz é viver a radicalidade do território, estar junto nos territórios de vida das pessoas. Nesse sentido, o Consultório na Rua também parte do processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira, advém desse processo, coloca a rua como lugar de produção de vida, de cuidado, de saúde. Sempre pensei que estas ruas desta cidade que guardaram a vivência da radicalidade de fechar o maior produtor de mortes, o manicômio Anchieta, poderiam fazer emergir forças de vida, de produção de desejos, de encontros…
Voltando ao cenário de práticas, no mesmo horário que nos dirigíamos a praça, observava um grupo de crianças jogava bola. Observava que acontecia uma ou outra interação entre o grupo de pessoas que atendíamos e as crianças. Uma bola que corria solta e alguém chutava de volta para os meninos, alguns olhares sendo trocados…observava uma certa disponibilidade das crianças ali presentes…algo acontecia. Em um dos dias um usuário que eu conversava, trouxe memórias muito vivas de sua infância, das brincadeiras que fazia, dos amigos, no momento que olhava os meninos que estavam ali presentes…. Outro usuário mostrou os pequenos bonecos que produzia com as madeiras que encontrava no lixo, que tentava vender para conseguir algum trocado.
Levei no encontro seguinte latas, bolas, tintas, pincéis, outros materiais e propus de construir brinquedos antigos da infância e eles abraçaram a ideia. A rua, lugar à margem, transformou-se em palco central para a criação, para o jogo, para a ginga, para o gesto. Logo os meninos se aproximaram para fazer junto. Um deles gostou dos brinquedos que aquele senhor produzia, os dois começaram uma conversa. Outro senhor que eu atendia, fazia algumas mágicas e ensinou a alguns meninos que ficaram encantados. A praça transformou-se em um campo de futebol. Depois houve corrida e samba com o pé de lata…
Mesmo que as memórias de vida e da infância sejam difíceis de serem lembradas por alguns participantes, por trazerem vivências que não desejam reviver, sentia naquele encontro uma possibilidade de criar uma outra infância, com outras pessoas…mesmo em um corpo adulto.
Depois desse dia, outros desejos brotaram, uma ideia de cinema na praça feito pelas pessoas em situação de rua com apoio dos serviços e comunidade local, a ida à encontros da luta antimanicomial, encontros em saúde mental em Bauru…
Penso que a Terapia Ocupacional na atenção psicossocial, junto as pessoas em situação de rua, luta para que cada um encontre de formas singulares, por muitas vezes, em agenciamentos coletivos, seu lugar no mundo, produza esse lugar, possam fazer coisas que façam sentido e que se afetem alegremente por esses fazeres, pela vida. E mesmo em tempos obscuros, o meio fio da rua se torna a linha da TO equilibrista, para que vínculos não se rompam, sejam tecidos fio a fio, sejam cuidados e fortalecidos. Cuida das feridas abertas e a capacidade de imaginar outros mundos.
Por fim, olhar novamente para estas práticas me fez lembrar o texto de Taniele Rui, que enuncia Cecília Meirelles, em uma batalha contra a morte física, dizendo que ‘a vida só é possível se reinventada’(2019).
Que outros mundos vamos inventar a partir de agora?
[fala do encontro ‘Atenção Psicossocial e Terapia Ocupacional – CREFITO-SP’ em 2021]
https://editora.redeunida.org.br/project/vivencias-do-cuidado-na-rua-producao-de-vida-em-territorios-marginais/
Por patrinutri
Que relato precioso Glenda!
Obrigada por compartilhar conosco. Isto nos dá esperança de reativarmos modos experimentados para lidar com as delicadezas da saúde na realidade crua das ruas. Nos dá a possibilidade de acreditar na humanização em espaços inóspitos e que um fazer acolhedor e uma clínica ampliada dá conta sim da saúde coletiva.
Seguimos acreditando e espalhando estas vivências para nos fortalecer ainda mais.
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