Poema de Fernando Pinto do Amaral
Zeitgeist
Os meus contemporâneos falam muito
e dizem – “Então é assim”,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as atuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas as outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra , menos fome,
continua abstrato, em folclore distante.
Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança propostas decisivas
e percorre as vertentes de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.
Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isto
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz
proíbem o tabaco e o açucar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-las a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
tropeço de ternura, queria ser
pelo menos tão ingênuo como eles,
partilhar cada frêmito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada afora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
a escala portuguesa – ó doce anestesia a invadir-me o corpo,
a libertar-me desse feitiço que se chama o Espírito
do tempo em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
a flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Sempre volto à leitura deste poema-ferramenta…