Coordenação Clínica (ampliada) e Rede Assistencial

12 votos

Um tema que já era apontado por BALINT é o chamado “o conluio do anonimato”. Para BALINT haveria um vácuo entre o generalista (GP) e o especialista, nos casos complexos, que acabava servindo de mecanismo inconsciente de defesa para que ninguém de fato assumisse o p a c i e n t e “difícil”. Em muitos casos este vácuo teria uma função protetora para os trabalhadores, na medida em que permitia um “ping-pong” do p a c i e n t e entre os vários serviços de saúde e uma certa indefinição de responsabilidade. Um aspecto complementar ao conluio do anonimato, mas que, num contexto de dificuldade de acessos aos serviços, ganha contornos preocupantes, é que muitas vezes o p a c i e n t e nem chega ao outro serviço. Os serviços, embora compartilhem o cuidado de vários usuários, comunicam-se, quando obrigados, através de “encaminhamentos”, papeizinhos anexados aos usuários, contendo mensagens que se acredita que dispararão as ações cabíveis ao outro serviço. O método lembra a “mensagem de garrafa de náufrago”. É como se o p a c i e n t e , com sua mensagem de encaminhamento, fosse ao mesmo tempo náufrago e garrafa de mensagem, jogado à própria sorte no oceano, que separa muitas vezes o trânsito de um serviço de saúde a outro. O fato é que o chamado “conluio do anonimato” apontado por BALINT configura-se freqüentemente mais radical, pois o p a c i e n t e muitas vezes nem chega a fazer um “ping-pong”, perdendo-se no meio da viagem.

 

Mas o que nos interessa destacar aqui é a forma como um serviço enxerga o outro, ou o padrão de subjetividade que as equipes constituem nas relações umas com as outras no contexto específico do SUS atual.

 

Se existem problemas complexos, e se existe a necessidade de ação sinérgica entre serviços e profissionais, quando isto não ocorre é evidente que surge um campo fértil para que floresça uma cultura institucional que se caracteriza por lidar com as dificuldades e frustrações, projetando no “outro”, todas as dificuldades e incômodos, em detrimento da análise de possíveis responsabilidades e co-produções do problema. . Desta forma é comum, talvez até mais acentuadamente nos serviços de ensino, o cultivo de uma certa animosidade entre serviços e entre especialidades. A despeito da óbvia relação de complementaridade que diferentes serviços, especialidades, disciplinas e corporações profissionais guardam entre si, constrói-se um imaginário de mútua exclusão e competitividade. Então, se um problema de saúde é de “minha” responsabilidade, automaticamente não é do outro. E se é do outro não é minha. Por extensão: se este saber é “meu” não é do outro e vice-versa. Vê-se instituída, na medida em que proliferam especialismos, uma clara desresponsabilidade com o sujeito acometido de uma ou várias doenças.

Evidentemente o modo de gestão das organizações e do sistema, marcado pelo taylorismo, contribui acentuadamente: a concentração de poder nas corporações, a separação entre quem pensa e decide de quem executa o trabalho, etc. A proposta da Equipe de Referência e Apoio Matricial (CAMPOS 2007) no campo da gestão é portanto fundamental. No entanto, esta proposta não depende somente de uma mudança formal, mas também de um outro padrão de subjetividade. Trata-se de acreditar que, embora eu não seja neurologista ou ortopedista eu preciso e posso entender quais são as propostas, as expectativas e os motivos destes especialistas em relação aos meus p a c i e n t e s. E mais ainda do outro lado, trata-se de perceber que embora eu seja um ortopedista ou um neurologista, por mais que eu me esforce eu não terei acesso a uma série de informações e recursos que os profissionais da atenção básica podem dispor, e que estes profissionais da atenção básica, de posse de uma compreensão mais clara das minhas intenções como especialista, poderão inclusive modular a minha conduta. Esta mudança de subjetividade pode ter bases concretas na gestão com as equipes de referência e apoio matricial e uma base clínica na atividade de coordenação.

Fazer a coordenação implica uma disponibilidade para o diálogo interdisciplinar, sem a pretensão de tomar o lugar de cada disciplina, mas com a ousadia de pensar para além de todas elas. Europeus e norte-americanos muitas vezes chamam esta atividade de “advocacy” (STARFIELD 2002), o que demonstra a forte âncora no vínculo e no diálogo com os p a c i e n t e s, na busca de defesa dos seus interesses dentro do mar de serviços de especialidades em que muitas vezes os usuários estão navegando. Porém, esta palavra pode desqualificar o forte componente técnico que existe na atividade de coordenação, ao vislumbrar várias possibilidades de diagnóstico, vários diagnósticos, compreendê-los minimamente, aventar os riscos acumulados, traduzir de forma compreensível para p a c i e n t e s e familiares, ponderar conjuntamente limites e possibilidades, custos e benefícios. Evidentemente, tal atividade precisa de mais suporte teórico e alguma legitimidade cultural, uma vez que produz uma certa insegurança na medida em que se contrapõe à ideologia da ciência positiva ao não se proclamar a eliminação da incerteza, mas sim assumi-la enfrentando as decisões apesar dela. a clínica ampliada, sob um certo ponto de vista filosófico, pode ser uma importante contribuição para a articulação de diferenças e composição de sínteses sigulares. A clínica ampliada, tal como ela se delineia, incorpora e valoriza a coordenação. Contrariando o que esta implícito em muitos textos sobre atenção primária (STARFIELD 2002), a atividade de coordenação não é necessária somente na relação da atenção básica no sistema de saúde, mas também nos serviços de saúde complexos, como enfermarias e UTI’s em que os p a c i e n t e s muitas vezes estão sob os cuidados de vários profissionais.