Trabalho realizado por Laís Rosa, vinculado ao estágio em CAPS no Internato em Saúde Mental do Curso de Graduação em Medicina da Universidade Federal de Alagoas, sob supervisão e orientação do professor Sérgio Seiji Aragaki.
“Eu não saí de casa esse fim de semana todo! Fiquei sozinho esses dias todos!”, foi o que disse orgulhosamente o usuário X durante um grupo de acolhimento no CAPS-AD. Me assustei! Perguntei na hora por que ele não havia saído. Será que era tímido? Havia brigado com os vizinhos? Não tinha família nem amigos?
A resposta me trouxe a dor: “Não saí porque se saísse ia beber e usar pedra”. É isso. Essa é a doença da nossa sociedade, a exclusão.
O senhor X continuou respondendo às perguntas que eu, espantada e preocupada, lhe fazia: Sim, se saísse ele teria que beber. Não, os amigos não deixavam de oferecer bebida e drogas a ele. Sim, muitos diziam que ele não ia conseguir parar. Não, ele não tinha mais uma família. Nem um emprego, nem amigos, nem vontade de sair, nem nada que queria conquistar. Ah, também não podia mais ver os filhos ou a própria mãe.
Dormi aquela noite me perguntado: o brasileiro não é famoso pelo acolhimento? Porque só acolhemos quem tem passaporte estrangeiro? Cadê o povo famoso pelo calor humano para aquecer esse marginal já congelado?
Usuário de drogas no Brasil é excluído, é marginal. Não marginal no sentido verdadeiro da palavra –aquele que está à margem da sociedade -, mas marginal de acordo com o imaginário coletivo. Marginal perigoso; marginal bandido; marginal que só serve morto.
Esse imaginário coletivo violento, construído em cima da truculência vivida ao longo da história do Brasil, pode ser perfeitamente ilustrado na falida política de Guerra às Drogas que o Brasil importou de países como os Estados Unidos.
Tudo começa no fim da década de 80, quando tráfico de drogas começa a ganhar projeção nacional e internacional. O “milagre econômico” vivido nos dias da ditadura começa a cobrar seu preço em inflação e na explosão demográfica dos centros urbanos, criando zonas de pobreza às margens das cidades.
Logo, as favelas e periferias assumem um papel central no mercado de drogas, tornando-se local de venda, recrutamento de jovens, assim como palco das truculentas disputas entre facções inimigas.
O problema do tráfico é, hoje, transnacional, o que torna a guerra às drogas uma estratégia difusa e amplia o controle social exercido por esta. Nesse contexto político, as drogas passam a ser o mal a ser eliminada pelo Estado e, ao mesmo tempo, produto a ser consumido pelas classes mais favorecidas.
Foi no meio desse cenário caótico que, em 1989, David Capistrano (então Secretário Municipal da Saúde de Santos – SP) e Fábio Mesquita (então coordenador do programa de DST/AIDS de Santos) formulam e colocam em prática a primeira ação de redução de danos no Brasil.
Nesse período, Santos era conhecida como “Capital da AIDS” e dados epidemiológicos mostravam que cerca de 51% dos casos de contaminação por HIV/AIDS se davam pelo compartilhamento de seringas para uso de drogas injetáveis. Capistrano e Mesquita, então, distribuíram seringas aos usuários, visando diminuir a contaminação entre esse grupo.
Por essa ação de Redução de Danos, eles foram acusados de incentivar o uso de drogas, sofrendo – inclusive- ações judiciais por parte das forças conservadoras e antidemocráticas que sustentam essa inútil e sangrenta guerra às drogas.
No CAPS-AD tive a oportunidade de ver de perto pessoas que fui ensinada a temer. Não são tão diferentes de mim. Se eles são viciados em crack, cocaína ou no álcool, eu sou viciada em café, celular e açúcar. Esta é uma sociedade de dependentes. Resta saber: qual a sua? O quanto a sua dependência afeta sua rotina?
Diante dessa experiência pessoal e da oportunidade de parar para ler sobre o tema da adição, fiquei muito curiosa quanto à premissa da abstinência como conceito de cura. Funciona?
Bom, o tempo que fiquei no CAPS foi realmente muito pequeno para fazer uma análise mais profunda, mas saio com a certeza de que o paradigma da abstinência gera muita angústia aos usuários.
Ao mesmo tempo em que entendo a dificuldade de manter um paciente em uso controlado da droga de abuso; enxergo o quanto a busca pela abstinência a qualquer custo gera impacto – muitas vezes negativos – sobre a vida do usuário. Não seria mais produtivo focar em reduzir os danos à vida do paciente, ainda que ele permaneça em uso de alguma quantidade de droga?
Além disso, não acredito que a indicação de abstinência pela maioria dos serviços seja pautada, de fato, nos benefícios da abstinência, mas sim na moral religiosa e jurídica na qual se baseia nossa sociedade. A moral brasileira é bastante influenciada por conceitos de origem cristã que tendem a demonizar toda e qualquer busca do prazer pelo prazer.
Na minha opinião, temos um grande exemplo de enfrentamento das drogas no Programa Braços Abertos do município de São Paulo.
Este projeto baseia suas ações em conceitos democráticos, que fazem do usuário o centro de sua ação, não a droga. Trabalham de modo a garantir direitos básicos, como moradia, alimentação e trabalho, visando ressocializá-los e devolvê-los ao convívio e à construção social.
O Braços Abertos atua inspirados no conceito de Baixa Exigência. O importante não são os sermões lotados de comandos autoritários, mas a criação de vínculos entre equipe-usuário de modo a gerar vontade de mudança. Trata-se um atendimento integrado que conecta redes de saúde a redes de cidadania que visa convergir para a construção de um sujeito-cidadão.
Além de todas as razões teóricas para se investir nesse tipo de trabalho, o Programa de Braços Abertos provou que sua abordagem é mais barata e eficaz que os métodos tradicionais.
Tudo isso me faz retomar ao primeiro parágrafo do meu relatório. O senhor X não é só vítima de sua adição. Ele também é vítima da moral grotescamente construída em nossa sociedade. Uma moral que toma conceitos religiosos de um grupo e aplica a todos, sem ter nenhuma preocupação com o sofrimento e angústia que gera sobre eles. O senhor X está sozinho, porque escolhemos para ele uma vida de abstinência, não só das drogas, mas de alegrias.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Laís, teu post é exemplo de acolhimento na melhor acepção da palavra.